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O STJ e o a vinculação aos valores éticos na prática de artes marciais

Em recente julgado[1], a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) considerou legítimo o aumento da pena-base no crime de lesão corporal cometido por praticante de artes marciais.

Para o colegiado, os princípios éticos das artes marciais autorizam a utilização da violência apenas em situações extremas, de modo que o delito com o uso de técnicas de luta, nesses casos, configura maior reprovação da conduta, o que validaria a exasperação da pena-base[2].

Importante trazer à baila a sentença do magistrado de piso, que não considerou válida a arguição do réu de legítima defesa putativa[3], tendo sido consignado o seguinte no relatório do decisum[4]:

Denota-se que não houve, por ocasião dos debates, qualquer controvérsia quanto à materialidade, quanto à autoria, quanto à tipicidade e quanto à antijuridicidade da conduta atribuída ao réu.

Isso porque, enquanto o laudo pericial comprova a ocorrência de lesões corporais de natureza gravíssima, o réu admitiu a prática delituosa, sob o argumento de que agiu em legítima defesa putativa.

Sob esse enfoque, o cerne da discussão é quanto à culpabilidade do réu, posto que a legítima defesa putativa é caracterizada como erro de proibição indireto.

Diz-se erro de proibição indireto aquele em que o agente conhece a ilicitude do fato, mas acredita estar diante de uma causa excludente de licitude. No caso dos autos, o réu tinha consciência de que lesão corporal é crime, argumentando que o praticou porque acreditava que seria agredido.

Tratando-se de matéria afeta à culpabilidade, a prova da existência da excludente incumbe à defesa, por força da teoria da indiciariedade. Em outras palavras, o fato típico é presumido antijurídico e culpável, impondo-se ao réu comprovar sua ocorrência.

Com essas premissas, verifico que a tese defensiva não deve prevalecer, diante da inexistência de qualquer prova que a ampare.

Isso porque, por exceção do interrogatório extrajudicial do réu (em Juízo foi decretada sua revelia), não foi produzida qualquer prova que justificasse a covarde agressão.

A vítima Danielles Patrick Silveira relatou que estava em uma festa na boate Moon com seus amigos, sendo que, quando acabou, aguardava sua amiga Valéria para juntos irem embora. Ao se dirigir a esta dizendo que iria ficar sem carona, ouviu o réu dizer que lutava Jiu-Jitsu e, na sequência, “apagou”.

Já a testemunha Marcelo Luiz Dutra Pereira contou que também estava na festa aguardando por Valéria, sendo que o réu teria dito por duas vezes que não a deixaria ir embora. Então, a vítima foi em sua direção e, quando retornava para o carro, viu o réu golpeá-la pelas costas.

A testemunha Valéria Felisberto Lúcio, ouvida somente na fase policial, contou que teve um pequeno desentendimento entre seus amigos e o réu, razão pela qual estava indo em direção ao carro junto com esses, momento em que o réu agrediu a vítima com um soco.

De toda a prova produzida, é fácil perceber que a alegação de legítima defesa putativa não passa de estratagema defensivo com o intuito de tentar eximir o réu de responsabilidade criminal.

Afinal de contas, resultou demonstrado que, além de não existir qualquer perigo atual (ainda que imaginário), o réu golpeou a vítima pelas costas por conta de a testemunha Valéria Felisberto Lúcio não querer passar a noite em sua companhia, deixando o local na companhia de seus amigos.

Portanto, é certo que o réu é culpável, de modo que sua condenação pela prática do crime previsto no art. 129, § 2°, IV, do Código Penal é medida de rigor.

Diante do que foi fundamentado e se tratando de réu imputável, com consciência e ânimo para conceber sua conduta, pois tinha possibilidade de conhecer o caráter ilícito do fato que praticou, sendo-lhe exigível conduta diversa, passo a dosar a pena na forma necessária e suficiente para a reprovação e prevenção do crime. Ressalto que será utilizado o critério trifásico, previsto no art. 68, caput, do Código Penal.

(…)

Nessa linha de raciocínio, constato que não existem/não foram comprovados motivos idôneos para a valoração, negativa ou positiva, dos antecedentes, da conduta social, da personalidade, dos motivos, das consequências ou do comportamento da vítima.

Quanto à culpabilidade, há necessidade do recrudescimento da pena do agente, posto que o réu anunciou que praticava a arte marcial Jiu-Jitsu.

Naturalmente, os respectivos praticantes aprendem que o combate corporal deve ser evitado a todo custo, sendo que o réu fez o oposto.

As circunstâncias também extrapolam o usual, uma vez que o crime foi praticado em local que as pessoas procuram por diversão (uma casa noturna).

Deixar de reprimir a covarde ação de forma diferenciada serviria como estímulo para que crimes semelhantes acontecessem nesses estabelecimentos. As consequências também devem ser valoradas negativamente, pois, além daquelas inerentes ao tipo penal (perda da sensibilidade da região), a vítima ficou com a boca torta e tem dificuldades para rir, por exemplo. Ademais, em decorrência disso, foram colocadas 2 placas e 8 parafusos, o que lhe causa dor até hoje. Isso sem contar na cicatriz (dano estético) que ficou embaixo de seu queixo. (grifos constantes na decisão)

Importante destacar que não existe previsão no Código Penal que trate o uso específico de técnicas de artes marciais como causa de aumento de pena em relação às lesões causadas. Entretanto, existem decisões recorrentes que tratam o conhecimento técnico como qualificador, na dosimetria da pena, ou como dolo eventual, ao se assumir o risco do resultado lesivo[5].

O enquadramento, ainda que jurisprudencial, de uma obrigação ética do praticante de artes marciais para com os princípios de seu treinamento pode ser um caminho interessante para dissuadir aqueles que procuram a arte marcial apenas para se impor fisicamente aos seus semelhantes e, às vezes, agredir de maneira mais eficiente outros cidadãos, como era o caso dos famosos “pitboys” nos anos 90, que assim era definidos:

O termo pitboy foi criado na imprensa carioca em março de 1999, e se origina da fusão das palavras pitbull, uma raça de cães mundialmente conhecida pela força e ferocidade, e playboy, nome dado, inicialmente, a milionários que viviam sem nenhuma preocupação com dinheiro ou com trabalho, e que hoje conserva mais a ideia de não-trabalho do que a de riqueza. Tal categoria foi criada em meio a uma “onda de ataques” praticados por jovens de classe média-alta que praticavam artes-marciais (na maioria o jiu-jitsu) e andavam (e brigavam) na maioria das vezes em grupo[6].

O conhecimento sobre as leis vigentes em nosso país é um aspecto do treinamento em artes marciais que é extremamente negligenciado. Um praticante de qualquer arte marcial deve ter uma compreensão geral dos valores da sociedade, a fim de melhor entender como se portar, pois os padrões da sociedade não são deixados na porta do dojô junto com os sapatos.

Embora as sutilezas legais não controlem estritamente a conduta de uma pessoa durante um encontro na rua ou durante o treinamento no dojô, um artista marcial deve reservar um tempo para refletir sobre as consequências legais que podem resultar do uso de suas técnicas.

Como um estudante de artes marciais sabe, ou deveria saber, o código de conduta no dojô[7] tradicional é bastante formal e o decoro adequado durante a prática deve ser rigorosamente respeitado.

Historicamente, isso pode ser atribuído ao conceito de bushido, o caminho do guerreiro, conceito proveniente do Japão feudal do século XII. Esse código oriental de cavalheirismo define estritamente a conduta adequada pela qual o bushi[8] poderia aplicar suas habilidades marciais.

Ocorre que, no mundo capitalista moderno, a ênfase na prática esportiva descaracterizou os valores éticos das artes marciais, tudo em busca de atender a vontade de grande parte dos alunos de hoje em dia, que procuram na luta apenas uma forma de diversão, de melhorar o físico ou mesmo de se sentirem superiores aos seus semelhantes.

Não se tem mais a obrigação, em muitas academias, de se cumprimentar o mestre, limpar o tatame, cumprimentar os colegas de treino etc. A relação entre mestre e aluno se tornou estritamente comercial, onde quem paga deve receber apenas o que deseja e não está sujeito a nenhuma cobrança em relação aquilo que lhe é ensinado.

As artes marciais oferecem uma saída para que os participantes canalizem a energia em uma atividade produtiva e de autoaprimoramento. Também já foi comprovado que elas melhoram a concentração e a autoconsciência em crianças e ajudam as funções executivas, inclusive o automonitoramento, a consciência e a regulação cognitiva[9].

Tradicionalmente, as lutas envolvem valores e modos de comportamento relacionados ao respeito, a dedicação, à confiança, à autoestima, visando ao desenvolvimento integral do ser humano. Todavia, se estes valores permanecerem na perspectiva da tradição e do discurso dos professores e não forem desenvolvidos procedimentalmente durante a prática pedagógica, terão pouca representatividade no processo da aprendizagem e da assunção de posturas positivas frente à vida[10].

Os professores são sujeitos ativos fundamentais nesse processo e precisam compreender que o estímulo às práticas de lutas e artes marciais deve estar relacionado com a busca pelo respeito durante todas as ações. As atividades de reflexão durante as aulas devem então não apenas possibilitar que os alunos possam pensar sobre as ações desenvolvidas, mas que elas possam provocar também uma ampliação para se pensar na questão dos valores, sejam eles vinculados às próprias práticas, seja eles relacionados à sociedade como um todo. Como uma construção, o desenvolvimento da cidadania se dá por meio de uma série de ações realizadas paulatinamente. Os processos de ensino e aprendizagem devem contribuir com isso, dentro de suas possibilidades e limites[11].

Ao final, é sempre importante lembrar da lição do Sensei Yasuhiro Konishi, mestre de karatê, acerca do ensino da luta, ensinamento esse que vale para todas as artes marciais: “O karatê tem como objetivo formar o caráter, melhorar o comportamento humano e cultivar a modéstia. No entanto, ele não garante isso[12].

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[1] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AREsp 2053119/SC, 6ª Turma, relator Ministro Jesuíno Rissato (Desembargador convocado do TJDFT), DEJT 30/06/2023. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=196459249&registro_numero=202200218428&peticao_numero=202200655398&publicacao_data=20230630&formato=PDF&_gl=1%2a1advea7%2a_ga%2aMTMxNTk1MDcwNC4xNTcwNTc0Mjcx%2a_ga_F31N0L6Z6D%2aMTY5NzgzODgzMy4xOTAuMS4xNjk3ODM4ODcyLjIxLjAuMA. Acesso em 16 nov. 2023.

[2]  Nos termos do artigo 59 do Código Penal, o juiz deve levar em conta, de um lado, a “culpabilidade”, os “antecedentes”, a “conduta social”, e a “personalidade do agente”, e, de outro, as “circunstâncias” e “consequências do crime”, bem como o “comportamento da vítima”.

[3] A legítima defesa putativa se constitui na conduta do agente, que, ao se imaginar em situação de legítima defesa, reage a esta suposta agressão injusta.

[4] AREsp 2053119/SC, op. cit., p. 583-586

[5] FARIAS, Seledon Said Dias de. O direito penal e as artes marciais: a relação entre a lesão esportiva e a responsabilização criminal do professor de artes marciais. Orientadora: Keity Mara Ferreira de Souza e Saboya. 2022. 57f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Departamento de Direito, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2023, p. 30. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/51088/1/DireitoPenalArtesMarciais_Farias_2022.pdf. Acesso em 16 nov. 2023.

[6] TEIXEIRA, ANTONIO CLAUDIO ENGELKE MENEZES. ESPORTE E VIOLÊNCIA NO JIU-JITSU: O CASO DOS PITBOYS. 2008, p. 18.  DOI https://doi.org/10.17771/PUCRio.acad.11860. Disponível em: https://www.maxwell.vrac.puc-rio.br/projetosEspeciais/ETDs/consultas/conteudo.php?strSecao=resultado&nrSeq=11860@1#:~:text=Resumo%3A,brigas%20e%20atos%20de%20vandalismo. Acesso em: 16 nov. 2023.

[7] Uma sala ou salão para a prática de artes marciais.

[8] Guerreiro.

[9] HARWOOD, Anna et al. Reducing aggression with martial arts: A meta-analysis of child and youth studies. Aggression and Violent Behavior, [S. l.], v. 34, p. 96-101, 1 maio 2017. DOI https://doi.org/10.1016/j.avb.2017.03.001. Disponível em: https://www.sciencedirect.com/science/article/abs/pii/S1359178917300976. Acesso em: 16 nov. 2023.

[10] RUFFINO, Luiz Gustavo Bonatto et al, (org.). Fundamentos pedagógicos do esporte educacional – lutas – volume 1: aspectos pedagógicos das lutas e as vivências múltiplas em jogos de luta e atividades de oposição dirigida. 1ª. ed. Curitiba: CRV, 2022, p. 29.

[11] Ibid., p. 78.

[12] http://findingkarate.com/wordpress/yasuhiro-konishi/.

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