Pesquisar
Close this search box.

O tampering, as manobras para “driblar” regras salariais e os desafios na busca por integridade e equilíbrio competitivo na NFL e na NBA

Percebi que meu lugar ainda é no campo, e não nas arquibancadas. Essa hora vai chegar. Mas não é agora.” Foi com essas palavras que, menos de dois meses depois de anunciar sua aposentadoria, Tom Brady, quarterback sete vezes vencedor do Super Bowl, voltou atrás e confirmou, pelo Twitter, que cumprirá o último ano de seu contrato com o Tampa Bay Buccaneers. Há meses, porém, alguns jornalistas vinham afirmando que a ensaiada aposentadoria do maior jogador de futebol americano de todos os tempos tinha sido, na verdade, motivada por outras razões não declaradas.

De fato, o que parecia ser uma teoria da conspiração se confirmou em 02/08/2022, dia em que a NFL anunciou punições ao Miami Dolphins em razão de a direção da franquia, dentre outros desvios, haver mantido “comunicações inadmissíveis” com Tom Brady.

Tais comunicações, classificadas pela liga como tampering, conduta que consiste em assediar indevidamente profissionais que estão sob contrato com outras equipes, teriam ocorrido na temporada 2019/2020, quando Brady ainda era atleta do New England Patriots, e de dezembro de 2021 em diante, enquanto o jogador integrava o elenco dos Buccaneers. A oferta feita pelos Dolphins? Brady receberia uma participação societária, poderia assumir um cargo executivo e, possivelmente seria, em um futuro breve, o novo quarterback da franquia de Miami.

Logo, partindo do pressuposto de que as conclusões obtidas pela investigação da NFL estão corretas, a aposentadoria anunciada pelo astro em fevereiro de 2022 seria só um jogo de cena para que ele ficasse livre de seu último ano de contrato com os Buccaneers. Assim, tempos depois, Brady conseguiria uma situação em tese mais favorável para a sua carreira (e para a sua real aposentadoria, já turbinada por um gigantesco contrato como comentarista da Fox).

Um ingrediente a mais para apimentar: o quarterback se juntaria em Miami ao consagrado treinador Sean Payton, representado pelo mesmo agente de Brady e também assediado pelos Dolphins enquanto treinava o New Orleans Saints. O plano teria sido abortado somente em razão da ação movida contra a NFL pelo ex-treinador do Miami Dolphins, Brian Flores, sob a alegação de práticas discriminatórias em processos de contratação ao redor da liga[1]. Enfim, um imbróglio e tanto…

A NFL não é a única a sofrer com o tampering e com manobras conhecidas como salary cap circumvention e unauthorized compensation. Na NBA, os responsáveis pela manutenção da integridade da liga vêm enfrentando, há tempos, situações dessa natureza.

Casos clássicos ocorreram ainda na década de 90, envolvendo o assédio do Miami Heat a Pat Riley, então técnico do New York Knicks (tampering), e os arranjos contratuais tidos como impróprios entre o Minnesota Timberwolves e o ala Joe Smith (salary cap circumvention). Mais recentemente, vieram a público alegações (não comprovadas) de que o tio e representante de Kawhi Leonard teria feito exigências financeiras a equipes que tentaram a contratação do atleta, algo absolutamente vedado pelos regulamentos da liga (unauthorized compensation). A verdade é que o número de episódios controversos veio crescendo a ponto de motivar a NBA a rever, em 2019, suas políticas de compliance e de punição a eventuais transgressões.

Quando comecei a acompanhar e a estudar a NBA e a NFL, fiquei impressionado com a inegável capacidade dessas ligas de manutenção do equilíbrio competitivo e de distribuição relativamente equânime, entre as franquias, do talento técnico e atlético disponível no universo de jogadores sob contrato. Para perceber isso, basta fazer um recorte de algumas temporadas e verificar a alternância de equipes classificadas aos playoffs.

Evidentemente, uma ferramenta importante na construção desse sistema é o draft, processo de recrutamento de atletas universitários e advindos de outras ligas que beneficia as equipes que tiveram pior desempenho esportivo na temporada anterior. Todavia, é sobretudo a existência de regras rígidas de repartição do dinheiro que garante a eficiência da engrenagem.

E o que o “namoro às escondidas” entre Tom Brady e o Miami Dolphins tem a nos ensinar sobre tudo isso?

Brady se notabilizou por manter, por muitos anos, um salário considerado “amigável”, que permitia ao New England Patriots ter espaço salarial suficiente para montar ao redor do quarterback elencos bons o bastante para que a equipe tivesse, quase sempre, condições concretas de brigar pelo título da NFL. Obviamente, não dá para resumir o sucesso dos Patriots a essa fórmula, mas ela não deixa de ser uma parte relevante da equação.

Até aí, apesar de queixas recorrentes de outros competidores, nada que pudesse ser considerado irregular: se Brady, casado com uma modelo multimilionária e contando com rentáveis contratos de patrocínio fora dos campos, aceitava receber um salário menor do que aquele que, em tese, ele poderia auferir em função de seu status na liga, as regras salariais continuariam preservadas desde que a remuneração paga pelos Patriots fosse minimamente compatível com a de outros quarterbacks de elite, o que efetivamente ocorria.

Contudo, o cenário é sensivelmente diferente se um atleta, a fim de contornar regras salariais, utiliza fontes alternativas para a obtenção de receita ou patrimônio, ainda que meramente potenciais. Isso poderia acontecer a partir do momento em que Brady, como um atrativo para se juntar à franquia, se tornasse proprietário minoritário do Miami Dolphins, com o agravante da “falsa” aposentadoria para se libertar de um contrato vigente.

Na NFL, na NBA e em qualquer liga profissional, compensações financeiras a jogadores ou seus representantes que estejam fora das contrapartidas garantidas pelo contrato de trabalho são um tiro no pé do almejado equilíbrio competitivo e, em linhas gerais, colocam em xeque a ética no esporte, traduzida no conceito de fair play, muito discutido também no futebol e em qualquer modalidade esportiva que se preze.

O meu ponto é: no mundo em que vivemos e, especialmente, na realidade do mercado norte-americano, em que atletas têm, de modo crescente, se engajado em oportunidades de negócios em diversos níveis, inclusive adquirindo participações societárias em franquias esportivas, os instrumentos de monitoramento e investigação precisarão ser exponencialmente mais acurados e talvez mais invasivos, quer queiramos, quer não. Da mesma forma, a pressão das ligas pela adesão de seus atores a regras rígidas de compliance terá de ser incessante, pois os limites são tênues e as zonas cinzentas são inumeráveis.

Estruturas societárias sofisticadas podem permitir, por exemplo, que atletas que possuem portfólios de investimentos diversificados, como Kevin Durant e LeBron James, notadamente o primeiro atleta a ter se tornado bilionário enquanto em atividade, possam ser, indiretamente, sócios de donos[2] de franquias que invistam, também indiretamente, nos mesmos empreendimentos.

Hipoteticamente, Steve Ballmer, Joe Tsai, Michael Jordan e Mark Cuban, que controlam, respectivamente, Los Angeles Clippers, Brooklyn Nets, Charlotte Hornets e Dallas Mavericks, e que pulverizam seus investimentos em segmentos econômicos variados, poderiam ser sócios, por meio de holdings e fundos, de atletas da NBA.

Indo um pouco além, seria razoável interpretar como salary cap circumvention doações a projetos sociais mantidos por atletas? Se atletas possuem marcas de roupas ou gravam discos, aquisições massivas de peças de vestuário ou contratações de shows por pessoas ligadas às franquias seriam uma maneira de gerar unauthorized compensation? Transações no metaverso seriam qualificáveis como operações passíveis de investigação pelas ligas?

Com um pouco de criatividade, é fácil extrapolar esses raciocínios e se deparar com dilemas complexos, para os quais não há respostas prontas. O fio condutor de qualquer resposta, no entanto, deve ser o compromisso com a ética. Sem ele, não há competição que valha a pena. E, em uma era na qual quase tudo se negocia, no esporte e fora dele, esse compromisso é algo que precisa ser inegociável.

Crédito imagem: MATT PATTERSON (AP)

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


[1] O Miami Dolphins, o Denver Broncos e o New York Giants são as franquias citadas nominalmente no processo. As demais franquias são referidas sob a alcunha “John Doe”, expressão genérica utilizada no sistema jurídico norte-americano para se referir a alguém hipoteticamente envolvido em uma determinada situação ou a alguém cuja identidade seja desconhecida ou precise ser preservada.

[2] A NBA passou a utilizar o termo Governor para se referir aos acionistas controladores das franquias, pois o termo utilizado até então (Owner) foi compreendido como sendo racialmente insensível. Para fins estritamente didáticos e no contexto específico desta coluna, mantivemos a nomenclatura tradicionalmente usada (“donos”).

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.