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O torcedor de papel

Eram três da tarde. A bola rolava às quatro, mas eles já estavam dispostos cada um no seu lugar. Cadeira após cadeira, fileira após fileira. Alguém, em algum momento daquela quarentena, tinha fabricado em seu maquinário cerebral a ideia de colocar no estádio fechado torcedores de papelão pra preencher os espaços vazios deixados pelos de carne e osso. Agora, o sujeito se deleitava em vê-los ali, todos enfileiradinhos com seus sorrisos estáticos.

Poderia parecer uma broma, mas é verdade. Aconteceu na Europa. O alastrar viral da doença que assolou o mundo sem dó fez do futebol uma vítima colateral. Sendo a coisa mais importante dentre as que menos importavam (porque o que importava mesmo mesmo era a preservação das vidas), a ausência do futebol deixou órfãos aqueles que por anos se acostumaram a ter nas arquibancadas uma rota necessária. Quando finalmente em alguns lugares a tal curva de contaminação se achatou (esse era o índice fundamental), o cidadão voltou a colocar os pés pra fora de casa, mas não dentro do estádio.

Por maior que fosse a vontade de ouvir de novo aquele roçar da cavalaria sobre a grama, o medo da contaminação e a prudência dos cientistas obrigou que ficasse vetada a presença do público no espetáculo, mesmo após o retorno progressivo dos matches. A orientação era clara: nada de aglomeração. E pro pesadelo do sujeito carente, assim funcionava. Portões fechados. Os dois times em campo, bola rolando, e silêncio absoluto.

Na verdade, o silêncio era tanto que, em se tratando de um jogo normal, um qualquer desavisado poderia pensar que seria um daqueles momentos em que o torcedor prende a respiração e perde a fala quando a bola está prestes a entrar no gol. Mas a bola entrava, e nada de GOOOL! Batia na trave, e nada de UUUHH! Poderiam ter pensado ao menos em um som ambiente.

De todo modo, foi aí que chegaram com a ideia: encher as cadeiras com torcedores de papel. Papel, papel mesmo. Quem sabe os jogadores se sentissem menos sozinhos durante a partida.

Como diria Galeano, não há nada mais vazio do que um estádio vazio, e não há nada menos mudo do que arquibancadas sem ninguém. Mas, nesse caso, não seriam aqueles totens paralisados que haveriam de tapar esse buraco.

Quando Golblatt escreveu a bíblia do futebol, escreveu também que o jogo é um lugar estranho e poderoso, parte da nossa cultura comum, e com uma herança fabulosa preenchida por repositórios de identidades e solidariedades. Um complexo de rituais coletivos e de conversas públicas que nos faz emergir de um mundo profundamente individualista, atomizado e dividido. Um lugar onde nos misturamos socialmente, e que trata nós, e não do eu.

Representados pelos soldadinhos de papel naquela tarde, como seriam eles a representação de nós? Se no fundo somos todos “mendigos do bom futebol”, isso significa não apenas querer testemunhar as maravilhas que acontecem dentro de campo, mas testemunhar também a multidão que esteve lá para presenciá-las. Vivenciar, a cada oportunidade, as histórias não ditas de cada partida.

Dito isso, preciso confessar – se já não estava claro – o meu desconforto com os torcedores de papel. Reconheço que é bem verdade que o falsear da realidade faz parte do futebol ou, no mínimo, caminha com ele. Como num drible em que o corpo diz que vai para um lado e balança pro outro, ou na finta que confunde o marcador. Mas, nesse caso, foram longe demais. Ao menos, não vai ter fila pro banheiro.

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