Inicio minha primeira coluna como colunista fixa do Lei em Campo pedindo a sua licença e a sua paciência, leitor, para agradecer a confiança depositada em mim para ocupar este espaço. É uma alegria imensa e, sobretudo, uma honra poder dividir minhas reflexões sobre a Justiça Desportiva ao lado de referências do Direito Desportivo; alguns deles há até pouco tempo meus professores na pós graduação e que continuam sendo meus Professores fora da sala de aula. Obrigada, muito obrigada!
Bem, como adiantei, vou conversar com você, semanalmente, sobre Justiça Desportiva. E hoje optei por falar do torcedor e o papel que ele tem (e que não tem) nos tribunais desportivos.
O torcedor não é jurisdicionado da Justiça Desportiva, ou seja, ao torcedor não se aplicariam diretamente as decisões tomadas pelos tribunais desportivos já que a ele não se aplica o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD). É o que nos diz o artigo 1º, § 1º, que tem a seguinte redação:
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1º Submetem-se a este Código, em todo o território nacional: I – as entidades nacionais e regionais de administração do desporto; II – as ligas nacionais e regionais; III – as entidades de prática desportiva, filiadas ou não às entidades de administração mencionadas nos incisos anteriores; IV – os atletas, profissionais e não-profissionais; V – os árbitros, assistentes e demais membros de equipe de arbitragem; VI – as pessoas naturais que exerçam quaisquer empregos, cargos ou funções, diretivos ou não, diretamente relacionados a alguma modalidade esportiva, em entidades mencionadas neste parágrafo, como, entre outros, dirigentes, administradores, treinadores, médicos ou membros de comissão técnica; VII – todas as demais entidades compreendidas pelo Sistema Nacional do Desporto que não tenham sido mencionadas nos incisos anteriores, bem como as pessoas naturais e jurídicas que lhes forem direta ou indiretamente vinculadas, filiadas, controladas ou coligadas.
Há quem argumente que o torcedor estaria contemplado no inciso VI, já que o dispositivo menciona “pessoas naturais que exerçam qualquer função” em entidades de prática desportiva (clubes). Não me filio a esta corrente. Entendo ser uma interpretação extensiva equivocada da norma; fosse a intenção do legislador incluir o torcedor no rol daqueles que são submetidos ao CBJD, o faria de forma mais explícita já que o torcedor exerce papel relevante numa competição desportiva (bem jurídico protegido pela Justiça Desportiva).
O torcedor, portanto, não se submete ao CBJD, nem é legítimo para apresentar uma notícia de infração disciplinar. Este documento, previsto no artigo 74 do CBJD pode ser apresentado por quem tiver conhecimento ou presencia a prática de irregularidades previstas no CBJD, desde que forneça as informações necessárias para que a Procuradoria tenha elementos que caracterizem a existência da infração para desencadear o processo desportivo disciplinar (a Procuradoria é quem inicia o processo por meio da denúncia). Ocorre que, a despeito de o mencionado artigo 74 do CBJD prever que “qualquer pessoa natural ou jurídica poderá apresentar por escrito notícia de infração disciplinar desportiva à Procuradoria, desde que haja legítimo interesse, acompanhada da prova de legitimidade”, o torcedor não pode apresentar o documento.
É que há entendimento firmado no Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) no sentido de que o torcedor não tem legitimidade para apresentar uma notícia de infração. O entendimento se concretiza sob o argumento de que o Estatuto do Torcedor oferece ao torcedor meios próprios de manifestação por meio da Ouvidoria. O artigo 6º do Estatuto do Torcedor prevê que deve haver, em toda competição, o ouvidor que forneça “os meios de comunicação necessários ao amplo acesso dos torcedores”. Desta forma, portanto, o torcedor se manifestaria por meio da ouvidoria e esta, se assim entendesse, teria a legitimidade para formular uma notícia de infração à ser apresentada ao Tribunal. A procuradoria analisaria a notícia de infração e, se entendesse pertinente, ofereceria a denuncia e iniciaria o processo desportivo.
Não parece ser um acesso simples do ponto de vista do torcedor.
Ocorre que, a despeito de não ser mencionado no artigo 1º, § 1º do CBJD como submetido ao Código, e não poder apresentar uma notícia de infração, o torcedor pode receber punição de um tribunal desportivo. É o que prevê o artigo 243-G, que pune a prática de ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência. O § 2º deste artigo prevê que, se o ato discriminatório for praticado por torcedor identificado, este pode ser condenado à proibição de ingresso na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias. É uma pena pesada, mas de difícil aplicação, já que o controle de ingresso não é tão simples.
Observe, portanto, que temos um cenário no qual o torcedor pode ser punido num Tribunal regido por um Código ao qual ele não está submetido, por meio de um processo ao qual ele não tem direito ao contraditório e à ampla defesa.
Não há espaço na Justiça Desportiva para a participação do torcedor, a não ser para puni-lo.
É claro que não apenas essa punição direta prevista no artigo 243-G, § 2º afeta o torcedor. Como já dito, o torcedor é parte importante da competição desportiva. A Justiça Desportiva, por força de determinação constitucional, tutela o bem jurídico competição desportiva. Desta forma, as decisões da Justiça Desportiva, que tem o condão de proteger a competição, afetam também o torcedor. Afetam tanto que muitos torcedores procuram a Justiça comum por sentirem que seu direito foi, de alguma forma, lesado por uma decisão da justiça Desportiva. Dessas ações propostas na Justiça comum, surgem decisões que, erroneamente, modificam competições desportivas (em datas, perdas de pontos, rebaixamentos e outros). Sabemos o quão temerária pode ser a interferência da Justiça comum na organização das competições desportivas.
Se houvesse meios eficazes de participação do torcedor na Justiça Desportiva, talvez a procura pelo Judiciário fosse menor. Essa participação poderia se dar pela notícia de infração. Não de forma individual, já que, se fosse o caso, a cada partida seriam apresentadas milhares de notícias de infração. Mas algo estruturado, de forma que um grupo de torcedores, munidos de um mínimo de assinaturas e da clara demonstração do legítimo interesse, pudesse apresentar a notícia de infração ao tribunal desportivo. Seria uma forma de aproximar o torcedor da Justiça Desportiva, enriquecendo ainda mais o trabalho dos tribunais.