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O uso da hermenêutica baseada em princípios para a solução de conflitos desportivos

Um dos temas mais palpitantes oriundos da teoria geral do direito, mas que tem merecido muito pouca atenção dos estudiosos do direito desportivo, diz respeito à possibilidade do emprego de uma hermenêutica baseada em princípios para a solução de conflitos na seara esportiva ou na esfera disciplinar. Haveria espaço para o seu emprego como nos demais ramos do direito ou sua utilização poderia macular a necessária segurança jurídica diante das peculiaridades do desporto?

É sabido que o direito desportivo possui suas peculiaridades em relação aos demais ramos do direito e estas devem ser sempre consideradas, mas, a nosso ver, tal constatação não pode torná-lo infenso às ferramentas clássicas da teoria geral do direito. Uma hermenêutica aberta a princípios pode contribuir para uma mais rica e qualitativa solução de conflitos no esporte ou para a aplicação de sanções disciplinares, pois aqueles podem atuar como instrumentos de correção quando da aplicação das regras desportivas. Os princípios também possuem conteúdo normativo e sua utilização mostra-se como de fundamental para importância na solução dos chamados hard cases, mas o seu emprego demanda uma maior sofisticação da fundamentação das decisões (e elevará o ônus argumentativo). Fundamentar significa justificar, legitimar, convencer e, é claro, é forçoso reconhecer que justificar uma decisão com base na aplicação de uma regra por mera subsunção é tarefa mais cômoda do que legitimá-la com base em princípios mais ou menos abstratos que possam, certas vezes, até mesmo afastar a incidência da regra.

O caso Portuguesa de Desportos, ocorrido na última rodada do Campeonato Brasileiro de 2013, é muito ilustrativo do “perigo inverso” da cega subsunção. O clube escalou irregularmente o atleta Héverton na última partida da competição contra o Grêmio, que estava no banco de reservas e somente entrou em campo aos 32 minutos do segundo tempo na partida que terminou com placar de 0 a 0 (zero a zero). Em julgamento cercado de pressões por todos os lados, o STJD do futebol decidiu pela perda dos pontos, o que acabou levando a Lusa ao rebaixamento e “salvando” o Fluminense, que teria sido aquele originalmente rebaixado com os resultados de campo, e também o Flamengo que, em outro julgamento, perdeu 4 (quatro pontos) pela escalação irregular do jogador André Santos contra o Cruzeiro, que havia sido expulso na última partida da Copa do Brasil de 2013 (a controvérsia gravitava em torno da forma de cumprimento da suspensão automática, se no próprio Campeonato Brasileiro de 2013 ou na Copa do Brasil do ano seguinte)[1].

O jogador Héverton da Portuguesa estaria irregular por conta de punição sofrida em julgamento realizado na sexta-feira (06/12/2013) imediatamente anterior à data do jogo (domingo, dia 08/12/2013). A agremiação alegou que a decisão não teria sido publicada e, ainda assim, a mesma só poderia ter eficácia a partir do primeiro dia útil seguinte. Os auditores argumentaram que, pelo CBJD, as decisões da Justiça Desportiva não costumam ser publicadas como na Justiça Comum e produzem efeito imediato após a proclamação do resultado na própria sessão de julgamento, o que os levou a decidir pela perda dos pontos via subsunção. Note-se que a partida foi realizada no dia 08 de dezembro de 2013 e a decisão disponibilizada no site da CBF apenas no dia 09 daquele mês.

O atleta irregular era reserva e foi escalado nos 13 minutos finais do tempo regulamentar. Sua participação em nada alterou o resultado de campo, que é um dos princípios cultuados pelo próprio CBJD, o qual também preza pela estabilidade das competições. Será que a escalação irregular de atleta é tão indefensável quanto parece? Teria o clube (que não estava na zona de rebaixamento àquela altura e teria de perder por goleada para eventualmente ser rebaixado) escalado o jovem atleta, que nunca havia se destacado no futebol, nos minutos finais, por deslealdade, com o intuito de burlar o fair play, outro princípio desportivo encampado nacional e internacionalmente?  Qual o escopo da regra que prevê a perda de pontos? Há nulidade sem prejuízo (instrumentalidade das formas)? Justifica-se alterar o resultado desportivo de campo, sem que houvesse mácula à disputa? Como fica a situação do apreciador, mais uma vez desconsiderado, que gastou seus suados recursos, compareceu presencialmente ou acompanhou pela TV e vê todo o produto cair por terra dias após festejar ou lamentar o resultado de seu clube, com a sensação de que perdeu seu precioso tempo? Se um jogador pode vir a atuar dopado, fazer o único gol da final da Copa do Mundo e, ainda assim, o resultado esportivo ser mantido, por que o mesmo não deveria ocorrer na hipótese, com tantas circunstâncias atenuantes? Sustentamos que o referido julgamento deveria ter sido guiado pelo caminho oposto, em respeito (também) ao princípio da pró-competição.

A cega subsunção desvirtuou o resultado do principal produto do futebol nacional, o Campeonato Brasileiro, em mais um episódio em que o mesmo resultou desacreditado, após sucessivas e históricas viradas de mesa. Todos os princípios e postulados acima invocados não são metaprincípios ou tirados da cartola. Ao contrário, são expressamente incorporados pelo ordenamento (na Constituição, na legislação processual ou de direito material, na Lei Geral do Esporte, na Lei Pelé, no CBJD ou simplesmente consagrados na tradição jurídica) e poderiam ser invocados em uma pretensão de correção para afastar as distorções claramente causadas pela aplicação subsuntiva da regra e facilmente legitimados em uma fundamentação mais rigorosa e sofisticada da decisão. Caso contrário, para que teriam sido incorporados? Note-se ainda que, mesmo que numa perspectiva mais legalista, a não divulgação da decisão antes da partida já impediria que a mesma produzisse efeitos, podendo tal vício defendido como causa de nulidade da mesma, nos termos do art. 36 do então em vigor Estatuto do Torcedor (que exigia que as decisões desportiva tivessem o mesmo grau de publicidade daquelas da Justiça Comum), o que, por si só, evitaria toda a cadeia de eventos. Seja numa perspectiva técnica ou principiológica, a decisão dada ao caso não se sustentava.

Vale recorrer às ponderações de Rodolfo Camargo de Mancuso à época do caso:

Ante a inviabilidade técnica, pois, da supressão da pontos da Portuguesa de Desportos, por conta da não postagem prévia da decisão desportiva no sítio da CBF, pode-se especular que um sucedâneo poderia ter sido excogitado pelo STJD, que, por esse alvitre, em acolhendo o recurso desse clube, lhe aplicaria outra penalidade, menos gravosa, compatível e adequada à ocorrência, tal uma advertência, multa, perda de mando de campo em alguns jogos do campeonato seguinte, sanções, de resto, previstas no elenco constante do §1º do art. 50 da Lei 9.615/1998. Inobstante, aplicou-se ao clube a pena da perda de quatro pontos, o que tanto bastou para rebaixá-lo à série B do campeonato nacional de 2014, sem maiores considerações ou ponderações acerca das circunstâncias dirimentes ou atenuantes que cercaram o episódio[2]. (grifo nosso)

A nosso ver, o caso Portuguesa foi tipicamente um hard case, um caso difícil, ao contrário do que aparentava numa primeira mirada, ainda mais porque envolveria a paixão clubística, sendo este um desafio sempre inerente à solução dos conflitos desportivos. Com a devida vênia, entendemos que o STJD poderia ter conduzido o julgamento em outra direção e acabou deixando terreno aberto para futuras tentativas de fraudes sob o manto da escalação irregular de atletas, agora uma poderosa arma para os incompetentes.

O caso deveria induzir a mudanças estruturais e mais uma oportunidade foi perdida. Pensando no apreciador, seria o caso de se cogitar em formas alternativas de publicização das decisões dos tribunais desportivos, pois os clubes não são os únicos interessados e por ser esta uma exigência de transparência. Por fim, chamando à responsabilidade as entidades de administração do desporto, por qual razão um jogador sabidamente irregular é autorizado a entrar em campo? Vale a reflexão.

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[1] Após o julgamento do Pleno do STJD, a Portuguesa de Desportos optou por não recorrer ao Tribunal Arbitral do Esporte (TAS/CAS). Já o Flamengo acionou o Tribunal em 2014 que, em 2015, manteve a punição a ela aplicada pelo STJD.

[2] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A imbricação entre Justiça Desportiva e Justiça Estatal – O caso da Associação Portuguesa de Desportos no campeonato brasileiro de 2013: contribuição para o deslinde técnico-jurídico da controvérsia. In: Revista dos Tribunais, n. 944, jun/2014, p. 60.

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