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O voo solo cada vez mais só

Por Cáscio Cardoso

Na manhã do dia 21 de maio de 2022, em Salvador, uma Assembleia Geral Extraordinária do Esporte Clube Vitória determinou a destituição do então presidente afastado do clube, Paulo Carneiro. Ficou decidido também que ele ficará inelegível no clube por 7 anos. Foi o 2º fim de uma “era PC” no time baiano. Paulo Carneiro assumiu o Vitória pouco antes do clube começar a jogar a série B em 2019, já afundado em dívidas, vindo de alguns anos só disputando para não cair. Em suas mãos, o clube jamais dormiu no G4 da competição nacional, foi eliminado 3 vezes seguidas na primeira fase do campeonato estadual e chegou à série C ao final de 2021. Entre esses resultados, polêmicas, decisões questionáveis, discussões, arroubos de autoritarismo, mais problemas. Ficou ainda pior.

Paulo Carneiro foi eleito sob a perspectiva de ser “a salvação do Vitória”.  Foi um “fantasma” que assombrou todos os presidentes da história recente do clube, principalmente os dois antecessores, Ivã de Almeida e Ricardo David.  Desde 2005, quando deixou o Vitória, por vontade própria, após rebaixar o time para a Série C, Paulo Carneiro virou um símbolo marcante que dividia opiniões. Muitos lembravam do último ato, muitos ainda destacavam o papel dele na promoção do Vitória em um clube relevante do futebol brasileiro a partir do início dos anos 90.

Nos 14 anos em que esteve fora do clube, teve seu nome citado inúmeras vezes, em especial quando algo não andava bem pelas bandas do estádio Manoel Barradas (que ele consolidou como mando de campo do Vitória). Até que em áudios, aparições públicas, comentando jogo a convite de rádio, ele passou a orbitar de forma mais organizada os assuntos do rubro-negro baiano. “Amigos da Ideia do Jogo” era o texto de abertura de seus comentários, que expunham a falta de qualidade das gestões rubro-negras e apresentavam as soluções para que o Vitória voltasse a ser o que foi sob seus cuidados entre 1991 e 2005: um clube que chegou entre os 4 primeiros da série A 2 vezes, em 1993 e 1999, que foi semifinalista da Copa do Brasil em 2004, que se tornou hegemônico no futebol baiano e nordestino, um “tubarão”, que contratava grandes destaques e atraía estrelas do futebol nacional para o futebol baiano. Bebeto, Túlio, Chiquinho, Uéslei, Cléber Santana, Edílson, Vampeta, entre outros destaques. Um clube aberto ao futebol internacional, que apresentou Petkovic ao Brasil, que teve Aristizábal no ataque do time, que revelou inúmeros atletas como Dida, Rodrigo Chagas, Paulo Isidoro, Alecsandro, Alex Alves, Fernando, Obina, Fábio Costa, Felipe, David Luiz, Hulk, entre muitos outros. Tudo isso entre os mesmos arroubos de autoritarismo, polêmicas, discussões, decisões questionáveis. E que culminou numa queda à série C. Pois bem, influenciados pelo discurso da “ideia do jogo”, pelo histórico de inegável mudança de patamar do clube sob a gestão do dirigente há 30 anos, torcedores e, principalmente, influentes personalidades do Vitória, muitos inclusive desafetos de Paulo Carneiro, se juntaram pelo nome do antigo presidente para devolvê-lo ao cargo, como um herói pronto para resgatar o Vitória. Com seu peso, no fim das contas, ele afundou ainda mais o clube em sua segunda passagem, e, entre outras coisas por gestão temerária, foi destituído oficialmente depois de mais de 6 meses afastado.

“Infeliz da nação que precisa de heróis” , escreveu Bertolt Brecht. É aí que chegamos na situação atual do clube de maior torcida do Brasil, o Flamengo. O rubro-negro carioca vive o drama de um fantasma que atende pelo nome de Jorge Jesus. O técnico que ganhou mais títulos do que perdeu jogos se configurou no pesadelo de todos os técnicos que o sucederam desde sua partida no meio de 2020. Domenec Torrent, Rogério Ceni, Renato Gaúcho e Paulo Sousa sofreram e sofrem, de alguma forma, com a sombra dos grandes resultados conquistados pelo português, em especial, em 2019. E diante das frustrações recentes com perdas de títulos, mesmo com um excelente time, essa pressão aumentou. Para completar o serviço, o próprio Jorge Jesus veio jogar uma gasolina no assunto, visitando o Brasil e dando declarações sobre seu desejo de voltar. Riscou o fósforo, jogou no chão, se mandou para o exterior de novo. E Paulo Sousa, atual técnico, que se vire para evitar as comparações e pressões extras. Torcida nas redes sociais e no Maracanã pede a cabeça do atual comandante e a situação do time na série A, muito longe da liderança, reforça o sentimento, apesar da boa campanha da Libertadores.

 É muito curioso que, no futebol, o desejo de reviver emoções e conquistas nos pauta, de forma geral, a resgatar os personagens que nos deram alegrias, em épocas diferentes, sob contextos diferentes, times diferentes, timing diferente. Um erro recorrente é avaliar um nome mais pelo que fez do que pelo que pode fazer atualmente. E nisso, muitos desses nomes que retornam perdem o carinho de suas torcidas por tentarem viver aquilo que já viveram ancorados num passado mais que no presente e na capacidade de repetir no futuro. Um recente resgate de destaque foi o do Manchester United, tentando recuperar terreno no futebol inglês a partir da contratação do craque Cristiano Ronaldo, 12 anos após a saída do português do clube, em um outro momento. Não adiantou. O United viveu sob diversos critérios, sua pior Premier League. E ficou apenas com uma vaga na Liga Europa. Cristiano Ronaldo fez valiosos 18 gols, mas a capa dos heróis anda cada vez mais surrada no futebol. O aspecto individual tem sido, de forma contundente, suplantado por aspectos coletivos e processos profissionalizados na montagem de times vencedores, de clubes que fazem sucesso, de seleções campeãs.

Dá uma olhada na diferença entre França campeã do mundo em 1998, facilmente alcunhada de “França de Zidane” para a França campeã do mundo de 2018, cheia de grandes destaques, mas sem unanimidade no nome do conquista. Poderia ser a França do Mbappe, do Griezmann, do Pogba, do Didier Deschamps. Alemanha do 7×1 não tem um “vilão” para os brasileiros, como foram Maradona e Caniggia em 1990 ou o próprio Zidane em 2006. Aquele time de 2014, do Joachim Low, tinha Thomas Muller, Khedira, Kroos, Klose, Gotze, Boateng, Hummels…foi a Alemanha de quem? A Espanha campeã em 2010? Foi a Espanha de quem? Do Iniesta? Do Xavi? Puyol? Casillas? Do tiki-taka…do jogo coletivo. A Itália de 2006? Alguém arrisca? O último campeão do mundo com algum brilho muito destacado do aspecto individual foi o Brasil em 2002, com Ronaldo. Na Liga dos Campeões da Europa, os maiores craques individuais da última década, Ronaldo e Messi, não chegam a uma decisão desde 2018. É o Chelsea campeão, o Bayern, com Lewandowski até assumindo algum protagonismo, mas longe de ser considerado o responsável pelo brilho do time, campeão, Liverpool em 2019, a mesma coisa. O. Liverpool, inclusive, tem um herói? Klopp? Acontece o mesmo com o Manchester City? Tem um herói? Guardiola? A destacar que os dois fazem muito sucesso por apresentarem times de muita força de conjunto, sem super-craques que resolvem tudo individualmente. O atual bicampeão da América também tem um técnico como destaque, que veste ali sua roupinha de herói. Abel Ferreira, do Palmeiras, é reconhecido por ser decisivo nas conquistas, mas o destaque do seu time é o jogo coletivo forte. E o que esses três últimos exemplos têm em comum? São clubes muito bem geridos, que dão condição para um bom trabalho ser feito. O Liverpool e o City com infraestrutura total de preparação para o jogo e gestão de talentos. O Palmeiras com um trabalho de divisão de base muito forte, que lastreou o time campeão das Libertadores. O City foi semifinalista da Champions sem Guardiola. O Liverpool bateu na trave para quebrar o jejum de Premier League sem Klopp. O Palmeiras conquistou o Brasileirão de 2016 com Cuca e 2018 com Felipão. Clubes estavam prontos para grandes profissionais chegarem e impulsionarem resultados que vivem hoje. Sem tirar mérito dos craques técnicos, o entorno, o que está em volta deles é fundamental para o sucesso e para o fracasso. Talvez a única exceção seja Hulk, no Atlético-MG, mas aí ele já tem até nome de um Vingador

Heróis e vilões são fantásticos para o enredo do futebol, para as histórias do esporte bretão, para o imaginário popular, para a concepção de ídolos, mas não podem pautar o trabalho de clubes e devem, o mínimo possível, influenciar em decisões que precisam de equilíbrio, bom senso e a consciência de que, na verdade, é a profissionalização, o trabalho em equipe, os processos estabelecidos e respeitados que vestem a capa invisível do sucesso. Que as bravatas fiquem na ficção, sob risco de serem destituídas do ambiente esportivo de alta performance. E sem alguém para salvá-las.

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Cáscio Cardoso é apresentador e comentarista esportivo da TV Aratu (SBT), da Rádio Sociedade da Bahia, do Podcast 45 Minutos e do Futebol S/A. Acredita em um futebol melhor a partir do aprofundamento das ideias e do equilíbrio na relação entre paixão e razão na condução do esporte mais encantador do mundo. É sócio do Futebol S/A.

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