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Obrigar ainda é o caminho?

Por Luiza Rosa Moreira de Castilho[1]e Luiza Soares[2]

Menos do que uma tese definitiva, o presente artigo retrata uma série de inquietações e dúvidas que não gostaríamos de cogitar em 2023, ano de uma muito aguardada Copa do Mundo de Futebol Feminino, em que imaginávamos estar debatendo outros temas.

Recentemente, a CBF anunciou que irá estender gradualmente, ao longo dos próximos 4 anos, a obrigação de investimento no Futebol Feminino aos clubes que disputam as Séries B, C e D do Campeonato Brasileiro masculino. Mas o que em outro momento poderia ser visto como um avanço, representa, a esta altura, uma preocupação.

A cultura de obrigatoriedade que se impôs ao Futebol Feminino no Brasil teve início em 2019, a partir da exigência consoante ao Regulamento de Licenças da CBF. Fazendo um breve resumo desses últimos anos, podemos perceber algumas mudanças importantes que, em conjunto, acabaram por criar uma projeção bem menos pessimista aos que militam na área, embora ainda a passos lentos.

Em 2022, no que parecia ser um caminho natural de evolução, chegamos a destacar o licenciamento específico da categoria, nos moldes do que já fazem a Asociación del Fútbol Argentino (AFA) e a Federação Paulista de Futebol (FPF), como uma ferramenta eficaz de desenvolvimento do Futebol Feminino naquela que acreditávamos estar apta para ser uma fase posterior à obrigatoriedade. Um ano depois, o cenário apresenta mudanças significativas, capazes de fazer a ideia de um licenciamento próprio parecer mais distante, ao mesmo tempo em que algumas situações corroboram sua importância.

A temporada de 2023, contudo, teve início trazendo à tona desafios que pareciam já superados: uma competição nacional que somente teve sua premiação definida dois dias antes da realização de sua primeira partida, a perda da transmissão da primeira fase do Campeonato Brasileiro Série A1 em tv aberta e a não renovação do contrato com a empresa responsável pela transmissão gratuita dos jogos da elite nacional em streaming.

Situações como essas atestam que o verdadeiro desenvolvimento do Futebol Feminino é um desafio constante e, como tal, requer mobilização e ações sólidas, sob pena de cada passo à frente implicar em dois passos atrás. É importante ressaltar que os imbróglios mencionados aconteceram no âmbito da elite do futebol feminino nacional, composta em sua maioria de clubes tradicionais de série A também no masculino. Ou seja, mesmo as estruturas administrativas que, presume-se, tenham maior expertise como um todo, já enfrentam dificuldades para manter o futebol feminino em condições razoáveis, pairando sobre a gestão da categoria uma sensação de insegurança jurídica que definitivamente não é compatível com o desenvolvimento sustentável de qualquer negócio.

Se estendermos esse olhar às Séries B, C e D, dada a realidade financeira e estrutural dos clubes que as integram, é ainda mais difícil pensar em um futebol feminino em progressão, sendo capaz de formar, desenvolver e remunerar atletas e profissionais no nível necessário para esse fim.

Até o momento, não foi difundido qualquer documento oficial contendo esse propósito, nem os caminhos para sua realização. Não se sabe, tampouco, o grau de flexibilização dessa decisão até que atinja a sua data limite, o que demonstra a necessidade inadiável de se trazer luz a essa discussão, sob pena de retrocedermos ainda mais na estruturação e consolidação do futebol feminino no país.

Diante disso, é conveniente apontar que ações mais efetivas da entidade de administração do esporte serão imprescindíveis para o sucesso da medida, tornando-a parte de um plano de ação capaz de refletir o compromisso institucional genuíno com a evolução da categoria e não apenas uma imposição regulamentar aos clubes. Faz-se, portanto, imperioso questionar se a medida será acompanhada de alguma espécie de investimento e/ou subsídio aos clubes a fim de que se alcance, ao menos, a estrutura básica necessária para atender tal determinação. Neste ponto, voltamos a destacar a implantação de um modelo de licenciamento próprio como uma eficiente ferramenta de fiscalização do cenário individual de cada clube, hipótese a partir da qual será possível estabelecer termos mínimos de investimento e manutenção da categoria e prever de modo claro as consequências em eventual caso de descumprimento.

Em termos de organização, a CBF promove atualmente as seguintes competições nacionais: três divisões do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, a SuperCopa do Brasil de Futebol Feminino e três torneios de base (Sub-20, Sub-18 e Sub-17). Vale  ponderar, em vista disso, se esta configuração será capaz de atender a demanda de clubes que passarão a integrar o sistema ou se haverá necessidade de aumento, na mesma progressão da extensão da obrigatoriedade, da quantidade de competições e/ou divisões do campeonato nacional. A resposta a essa indagação passa, primeiramente, pela definição da obrigatoriedade alcançar somente a participação em campeonatos nacionais ou limitar-se a competições oficiais independentemente de sua natureza.

Ainda no que se refere a competições, a experiência recente ratifica que o nível de investimento e desenvolvimento das equipes é crucial para a manutenção do equilíbrio técnico e da qualidade da competição. Além de ser um aspecto importante na avaliação do grau de desenvolvimento do Futebol Feminino no país, esse é um fator determinante no potencial de exploração comercial dos campeonatos. Dessa forma, um plano de ação realmente dedicado ao fomento da categoria deverá indispensavelmente prever processos voltados a trabalhar a qualidade do esporte praticado, o que envolve, ainda, aumento do orçamento e da premiação dos certames, de maneira a promover um ciclo sustentável de investimento e retorno que seja capaz de oferecer aos clubes outras vantagens que não se limitem ao mero cumprimento de uma obrigação regulamentar.

Por esse ângulo, é fundamental apontar que, diante da possível multiplicação das competições de nível nacional, o aumento no volume de trabalho para a Justiça Desportiva também seria uma realidade. Atualmente, a 6ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol tem como exclusividade o processamento e julgamento das infrações específicas do futebol feminino, enquanto as outras cinco Comissões se dedicam ao futebol masculino e seus tantos campeonatos. Muito provavelmente, a redistribuição desses casos também deverá ser reconsiderada se esse cenário hipotético se concretizar.

Além de impor, a CBF como entidade nacional precisa estimular a amplificação da qualificação na categoria. Não é novidade que a FIFA já apresentou uma série de orientações para as associações membro adotarem quando do desenvolvimento do futebol feminino nacional que incluem, mas vão além da dilatação normativa.

Dentre essas diretrizes, está a criação de programas de incentivo para a formação e especialização de treinadoras e árbitras, com o objetivo de aumentar o número de profissionais que possuam o conhecimento direcionado através de densa qualificação. Também é assinalado o impulsionamento das estruturas escolares para incorporar o futebol no currículo escolar, a exemplo do que fez a AFA recentemente, para aumentar o acesso das meninas aos treinos e atividades organizadas. No mesmo sentido, a construção de programas voltados para a análise de dados sensíveis de saúde, com foco na prevenção de lesões, biologia feminina e condições físicas de jogo.

Tais linhas, dispostas pela FIFA e já validadas por outras associações nacionais, representam, portanto, um direcionamento sólido quanto a ações e processos que devem ser desenvolvidos, necessitando, para seu sucesso, do real comprometimento e investimento das entidades responsáveis em âmbito nacional.

Certo é que estamos vivendo o polimento da organização do futebol feminino nacional, e cumprindo uma das condutas esperadas pela FIFA, que é a maior aplicação de força regulatória específica. No entanto, a iniciativa não passa somente por aumentar o arcabouço normativo, mas fortalecer os processos de profissionalização, seja através da criação de plataformas de compartilhamento, seja por meio do próprio TMS, seja pela incorporação de um sistema de licenciamento de clubes para o futebol feminino.

Por fim, é importante ter em mente que a extensão da obrigatoriedade, embora traga preocupações em relação ao nível do desenvolvimento da categoria, implicará no fim de uma prática que é bastante danosa ao futebol feminino, que é o encerramento do departamento ou diminuição drástica dos investimentos quando a equipe masculina é rebaixada de divisão. Esse benefício, a título de destaque, ajuda a dimensionar a complexidade da questão e a necessidade de ampliação do debate em prol da consolidação da categoria em nosso país.

Crédito imagem: CBF/Divulgação

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[1] Advogada. Diplomada em Gênero e Esporte pela Universidad de Buenos Aires e Gestão Esportiva pela CONMEBOL. Pós-graduada em Compliance e Gestão de Riscos pela Faculdade Pólis Civitas. Especialista em Compliance no Futebol pela CBF Academy. Procuradora na 6ª Comissão Disciplinar do STJD do Futebol. Auditora na 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Judô. Auditora na 2ª Comissão Disciplinar do STJD do Ciclismo. Auditora no Pleno do TJD/PR do Futsal. Auditora no Pleno do TJD/PR do Motociclismo. Presidente da ALL Esportes Brasil. Secretária da Comissão de Direito Desportivo da OAB/PR. Membro do Grupo de Estudos de Direito Desportivo do IBDD. Membro filiado e colunista do IBDD.

[2] Pós-Graduada em Direito Desportivo pela Faculdade CERS/Lei em Campo. Graduada em Direito pela PUCRS. Gestora de Futebol pela Universidade do Futebol e Instituto Federal de Ciência e Tecnologia do Ceará. Membro-filiada do Instituto Brasileiro de Direito Desportivo. Fundadora do Luiza Soares Advocacia e Consultoria Jurídica. Advogada associada do Andrei Kampff Proteção Jurídica nas áreas de Contratos, Compliance e Direito Desportivo.

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