Os jogos olímpicos de Paris nem começaram e já têm um derrotado, o slogan da Olimpíada “Jogos Para Todos”. Sem buscar mais exemplos, um só já derruba esse sofisma de integração que o evento carrega. Estou falando de Caster Semenya.
Mais uma vez a bicampeã olímpica dos 800 metros rasos (2012 e 2016) e tricampeã mundial (2009, 2011 e 2017) esta impedida de competir devido a uma taxa de testosterona particularmente elevada, produzida NATURALMENTE pelo organismo dela. O esporte que deveria agregar, segrega mais um vez. Agora – em Tóquio também foi assim – no principal evento do olimpismo do planeta.
Recentemente a atleta de 33 anos depôs em audiência na Grande Sala do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), em mais um capítulo de uma grande briga jurídica.
O “Caso Semenya”
A força dos acontecimentos esportivos atropela fatos, alguns até históricos. Tanto que pouco falamos – menos ainda comemoramos – de uma longa batalha jurídica da sul-africana contra o movimento esportivo pelo direito de ser quem é.
A atleta foi proibida de participar de competições por conta de uma produção natural de testosterona. Em função disso tem ficado de fora de grandes eventos. Mas ela decidiu brigar fora das pistas.
No ano passado, ela obteve uma grande vitória no Tribunal Europeu de Direitos Humanos, depois de uma longa batalha na justiça. Ela ganhou o direito de ser quem ela é, contrariando decisões dos tribunais esportivos que a mantiveram fora das competições.
A vitória foi justificada a partir de alguns pilares que merecem destaque:
– a competência de um tribunal estatal para analisar um litígio entre partes que não precisam estar necessariamente na Europa, protegendo o direito universal de ação das partes;
– que dentro da cadeia jurídica do esporte o Tribunal Suiço tem competência limitada, não respondendo a questões necessárias em muitos casos, como a proteção de direitos humanos;
– que o Tribunal Arbitral do Esporte era arbitragem compulsória (obrigatória), privando Caster Semenya de recorrer aos tribunais ordinários e, apesar de sua fundamentação detalhada em sua sentença, o TAS não aplicou as disposições da Convenção Europeia de Direitos Humanos, deixando em aberto sérias questões sobre a validade dos Regulamentos privados das entidades esportivas;
– que embora o Tribunal reconheça as vantagens de um sistema centralizado de resolução de litígios no esporte, destaca que, se ele se declarasse incompetente, privaria uma categoria de pessoas, atletas profissionais, do acesso à justiça;
– que a decisão esportiva esqueceu de regras universais de direitos humanos, como os art 13 e 14 da Convenção Européia de Direitos Humanos e a jurisprudência dos Tribunais estatais de DH.
– o tribunal de DH também destacou que ao não aplicar o artigo 14.º aos regulamentos privados de World Athletics, o Tribunal Suiço não cumpriu a jurisprudência do Tribunal Eurpeu de Direitos Humanos e as obrigações positivas dos Estados
Esses artigos são partes importantes da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e refletem os princípios fundamentais de proteção dos direitos e liberdades individuais, bem como de assegurar que as pessoas tenham recursos adequados em caso de violações ou discriminação.
Ou seja, a decisão reforçou a necessária proteção de direitos humanos em ambiente esportivo e mostrou que a vigilância do Estado é permanente. Aliás, duas das pautas mais atuais do mundo jurídico esportivo na atualidade.
Mas vale lembrar do caso e da decisão do TAS.
O caso
Caster Semenya tem hiperandrogenismo. O hiperandrogenismo é um problema endócrino caracterizado pelo aumento da ação dos andrógenos — hormônios masculinos, como a testosterona.
Para a World Athletics (Federação Internacional de Atletismo), isso gera vantagem competitiva às mulheres que competem, o que fere a “necessária igualdade” entre competidores.
A caso coloca mais uma vez em confronto alicerces da prática desportiva: a igualdade na competição e o combate à discriminação. As entidades de prática esportiva, por meio do controle antidopagem, sempre se preocuparam em coibir práticas manifestamente que contrariam a lealdade das competições.
No entanto, a proteção de direitos humanos não se separa do jogo e, no caso de variações biológicas, como no caso de Semenya, cumpre entender que “igualdade” precisa ser protegida.
A decisão da Justiça
A bicampeã olímpica dos 800 metros decidiu lutar dentro do movimento privado do esporte pelo direito de competir do jeito que ela é. E perdeu.
O Tribunal Federal Suíço (SFT), uma espécie de “STF do movimento esportivo”, concluiu que a exigência de submeter certas atletas a intervenções cirúrgicas ou medicamentosas como pré-condição para competir “não constituía uma violação da política pública suíça” e manteve decisão do TAS sobre regulamentações de testosterona.
Agora, como que a Corte Suiça reconheceu uma decisão da lex sportiva que não está em conformidade com os direitos humanos?
Repetindo: direitos universais não se separam do jogo, jamais.
Caster Semenya e todas as mulheres com desenvolvimento sexual diferente (DSD), cujo organismo produz mais testosterona do que o considerado normal para o gênero feminino biológico, precisam ser medicadas para reduzir os níveis do hormônio no organismo. Do contrário, são proibidas de disputar provas oficiais nas distâncias entre 400 e 1.500 metros.
As entidades esportivas determinam que as atletas com hiperandrogenismo façam a ingestão de hormônio antagônico, encontrado nos contraceptivos. Isso faz com que o nível de testosterona baixe. Ou seja, uma espécie de “doping às avessas”.
Foi isso que o próprio TAS entendeu, em 2019, como sendo “necessário, razoável e proporcional” para preservar a integridade do atletismo feminino. Mesmo considerando as normas “discriminatórias”.
Agora, se as características não medicamentosas dão vantagens aos atletas, isso faz parte da lógica do esporte competitivo. Superar os desafios através de treino e do desenvolvimento das habilidades.
Já se questionou a altura de Usain Bolt e a envergadura de Michael Phelps? Ou elas foram celebradas e explicadas cientificamente como elementos que ajudam nos feitos desses gênios do esporte?
O regulamento em vigor – reconhecido pelos Tribunais – permite que mulheres que não desejam reduzir seus níveis de testosterona possam participar na categoria feminina de quaisquer eventos não internacionais e nos eventos internacionais ditos “não restritos”. Possibilita também que essas mulheres possam disputar na categoria masculina e em eventual categoria intersex.
Esse caminho tem provocado reações fortes da comunidade mundial, Relatoria Especial da ONU para o Direito à Saúde conclamou as organizações esportivas a implantarem políticas de acordo com as normas de direitos humanos e a não introduzirem políticas que forcem mulheres a passarem por procedimentos médicos desnecessários e irreversíveis para participar de competições femininas.
No campo do direito internacional dos direitos humanos, os Princípios de Yogyakarta estabelecem que os Estados devem garantir que todos os indivíduos possam participar de esportes sem discriminação em razão de orientação sexual, identidade de gênero, expressão de gênero ou características sexuais.
A organização Human Rights Watch publicou uma carta aberta ao presidente da Federação de Atletismo sustentando que essa regulamentação é discriminatória e promove violações de direitos humanos internacionalmente protegidos, incluindo o direito à privacidade, à saúde, à integridade do corpo, à dignidade e à não discriminação.
Se os níveis de testosterona estão sendo regulados para o esporte feminino, eles também podem ser para os homens?
Os regulamentos tratam os homens de forma diferente. Os atletas com níveis de testosterona acima do normal podem se submeter a exames para demonstrar que se trata de uma questão genética, e eles então recebem uma carteira que lhes permite competir sem o risco de punição por doping.
Mais uma vez esporte esquece sua natureza igualitária e mulheres são as vítimas.
Entidades exigirem que determinada pessoa modifique suas condições naturais para se adequar a um pseudo-padrão me parece uma afronta aos direitos fundamentais.
Esse parece ser também o entendimento do Tribunal Europeu de Direitos Humanos.
E agora?
Agora, cabe às organizações esportivas compreender que seus regulamentos e normas não estão imunes ao crivo de outros sistemas, especialmente em matérias de direitos humanos.
Do ponto de vista da governança esportiva, a decisão é mais uma a mostrar que o Tribunal Arbitral do Esporte e o próprio Tribunal Federal Suiço estão sob a vigilância de tribunais estatais de direitos humanos;
E, mais, essa vigilância do Estado não recai apenas em questões formais, ao devido processo legal, mas também para análise efetiva sobre se os regulamentos esportivos estão em conformidade com direitos universais.
Quando falou sobre o caso que agora esta na Grande Sala do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), Semenya defendeu disse que espera “abrir caminhos” para outras atletas hiperandrogênicas.
A decisão da Grande Sala é importante para mais um vez reforçar para o movimento esportivo que o diálogo para proteger o equilíbrio esportivo é fundamental desde que tenha como pilar a inegociável proteção de direitos humanos.
Ou seja, se existe um aparente conflito entre regra de elegibilidade e um princípio de Direitos Humanos, só há um caminho a seguir: o da proteção da dignidade da pessoa humana.
Decisões de tribunais estatais têm reforçado isso, o que faz com que o movimento esportivo seja obrigado a rever regras de exclusão. Entender isso é o desafio do esporte, até como forma de proteção da autonomia.
Vide o caso de Semenya, uma atleta sul-africana que buscou um tribunal europeu de direitos humanos para ter reconhecido o direito de ser no esporte quem ela realmente é.
Crédito imagem: Getty Images
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