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Ordem, progresso e esporte

Quando se fala em poder, o ordenamento jurídico brasileiro adota a Teoria da Separação dos Poderes (art. 2º, CF), compreendido pela ideia de um sistema de freios e contrapesos, como também é denominada a teoria iluminista de Montesquieu (em “O Espírito das Leis”), o qual, através do pacto social, todos, a partir da premissa de que são sujeitos de direitos sociais e individuais (político, vida, propriedade, liberdade, igualdade, justiça), renunciam em parte dessa liberdade em busca da segurança na vida em sociedade.

Parte da doutrina afirma ser um equívoco tratar referida divisão como “separação dos poderes”, por terem a acepção de que o poder estatal é uno, devendo, então expressar a ideia de separação de funções.

O conceito que traduz o ideal de um Estado Democrático de Direito adveio do Estado Liberal, onde a participação do Estado passou a ser mitigada frente aos direitos individuais. O movimento surgiu com a Revolução Francesa, e a sua  previsão consta na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789).

Com isso, tem-se os conhecidos Poderes Executivo, Legislativo, Judiciário, cujas funções típicas constituem, respectivamente, a administração pública, a criação de leis (normas gerais e abstratas), e a aplicação da lei ao caso concreto em caso de litígios.  Ainda, sob a perspectiva prática, pode-se afirmar que o Tribunal de Contas e o Ministério Público também integram como poderes de um Estado.

A teoria democrática se pauta na soberania popular e na liberdade dos indivíduos, respeitadas as ordens impostas. Inspirada nas obras “Política”, de Aristóteles, e “Segundo Tratado do Governo Civil”, de John Locke, culminaram em grandes marcos históricos mundiais, entre eles, na independência dos Estados Unidos (1776).

A partir da lógica do pacto (“contrato social”), os cidadãos são governados por um representante, sendo este uma pessoa escolhida pela maioria, e a estes impõem-se leis devidamente elaboradas, cuja aplicação ocorre através da atuação de juízes investidos e imparciais. Resume-se, portanto, a ideia de um poder moderado, sem absolutismo incitado pela centralização de poderes.

Cada poder possui a capacidade de se autorregular, e, de forma autônoma e independente, pode ser controlado como função atípica dos demais poderes. Por essa razão que o Poder Judiciário pode declarar a inconstitucionalidade de uma lei, ou o representante do Poder Executivo pode ser destituído de seu cargo mediante atuação do Poder Legislativo.

Conduzindo o raciocínio para uma estrutura de uma entidade de prática desportiva, sendo o clube, neste comparativo, o Estado,  o poder executivo equivaleria à diretoria executiva, cumprindo ao conselho fiscal ou conselho deliberativo o papel de contrapeso ao poder outorgado aos mandatários da diretoria, incumbindo a estes a consulta sobre as atividades da associação, a deliberação sobre a nomeação e a exoneração dos membros, assim como das decisões, da política de administração, da prestação de contas, da alteração no estatuto, da fiscalização sobre a gestão etc.

A instituição de um órgão como contrapeso do corpo diretivo representa fundamental contribuição para o andamento sustentável da gestão da entidade.

Exemplo disso pode ser extraído da arquitetura dos órgãos que possuem a participação societária da União. Segundo dispõe no Guia de Orientação do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa que exige-se a instituição de um conselho fiscal como órgão fiscalizador permanente “independente da diretoria e do conselho de administração” como forma de garantir “através dos princípios da transparência, equidade e prestação de contas, contribuir para o melhor desempenho da organização.”

Considera-se, portanto, como um órgão capaz de fornecer o devido contrapeso às tomadas de decisões e aos poderes outorgados aos mandatários, como medida de controle dos atos internos. Nesse caso, impõe-se a instituição do conselho fiscal como órgão permanente, tal como pressupõe o art. 5º da Lei da SAF, inserido no capítulo de Governança da SAF.

Essa estrutura elide possível conflito de interesse e decisões contaminadas, e para tanto, o órgão deve contar com independência técnica, devendo, ao menos um membro contar com participação em Assembleia Geral (art. 164, Lei nº 6.404/76 – Lei da S.A.). Da mesma forma, para garantir a independência, o membro do conselho fiscal não pode ocupar cargos em mais de dois conselhos (como de Administração).

Levando agora o assunto para o futebol, cabe questionar qual seria o contrapeso da entidade máxima de administração desportiva da modalidade.

Mais precisamente, muito antes da existência da FIFA, as regras do futebol começaram a serem escritas pela recém fundada Football Association inglesa, em 1863.

Posteriormente, instituiu-se a International Football Association Board (IFAB), em 1886, formada inicialmente pelas federações da Inglaterra, País de Gales, Escócia e Irlanda.

Sendo este o órgão o qual estabelece as regras da modalidade, uma forma de contrapeso às alterações destas ocorre somente mediante aprovação de 75% dos votos dos integrantes. Para tanto, além da prescindir de todos os votos da FIFA, para eventual alteração nas regras, ainda demandaria aprovação de pelo menos duas federações, sendo o contrapeso para decisões arbitrárias, descabidas, ou parciais a determinados interesses.

Agora sim, no que tange a FIFA, a entidade máxima de administração do futebol regula a modalidade, impondo regras a serem absorvidas por ordenamento jurídico diversos, para que haja equidade na condução do esporte, a despeito da legislação local. Nessa perspectiva, parte da doutrina entende que a disposição do art. 1º da Lei Pelé inclui as leis internacionais que versam sobre o desporto como fonte do direito, e esse é o ponto de partida de determinações transnacionais, ou seja, impostas por meio de regulamento emanado pelo direito privado.

Os artigos 66 e 68 do Estatuto da FIFA vedam que a Justiça Comum seja acionada para apreciar e julgar conflitos desportivos, exceto em casos específicos e autorizados pela própria FIFA. Isso significa que a FIFA proíbe que ligas, entidades de administração e prática desportiva filiadas à entidade, e respectivos membros, jogadores ou árbitros acione a jurisdição estatal em busca de resoluções de questões internas, sob pena de incorrer em sanção como multa ou até exclusão de competições.

A situação acima citada é apenas um exemplo de que para entidade de administração desportiva, salvo hipótese de manifesta ofensa à legislação, não pressupõe um sistema de contrapesos para mitigar o poder de decisão e a condução da gestão.

No que se refere ao esporte, apesar da poderosa influência do torcedor, para a efetiva mudança na situação retratada, impõe-se um contrapeso à altura, como talvez a concretização de entidades concorrentes. Fato é que hoje, a dona do jogo continua movimentando torcidas, telespectadores e fortunas, e não há balanço para freia-la.

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BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 10. Ed. São Paulo: Malheiros, 1988.

BRASIL. Constituição 1988. Brasília: Senado Federal, 2018.

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