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Os bastidores do Marco Legal do Games

Por 17 anos atuei junto ao Judiciário e me acostumei a ouvir a seguinte frase: “papel aceita tudo”. E sim, de fato, cada advogado tem autonomia para requerer o que bem entender dentro dos interesses de quem representa. Se o pedido será ou não aceito, aí é outra história. A experiência me mostrou que a falta de razoabilidade não passa despercebida pelo juiz. Dificilmente um peido sem cabimento é acolhido e, mesmo quando acolhido, acaba sendo reformado em uma instância superior. Prevalece o bom senso.

Há 2 anos atuando mais próximo ao Legislativo, identifico uma situação semelhante. No processo de construção de pautas, os particulares pedem de tudo, como se o texto de um projeto de lei fosse uma folha em branco. Mas os parlamentares, assim como os juízes, costumam ser criteriosos para acolher ou não uma sugestão é incorporá-la a um texto que pode vir a ser uma lei. É preciso razoabilidade. É necessário pensar coletivo.

Pedidos não acolhidos, sejam eles no Judiciário ou no Legislativo, geram insatisfação da parte que não foi atendida, é natural. Mas receber um não, especialmente em se tratando de requerimentos infundados e que não atendem ao interesse da maioria, faz parte do jogo democrático. Nem sempre se pode ganhar.

No Projeto de Lei 2796/21, o Marco dos Games, se observa o desapontamento de alguns com ajustes de texto que até agora não foram acolhidos. Vale entender melhor.

Sob o argumento de que o processo legislativo não tem permitido que o setor de desenvolvedores de jogos seja ouvido, observa-se, na verdade, uma completa distorção dos fatos. O setor foi ouvido, porém nem todos seus pedidos foram acolhidos. Não ter seu ponto de vista incorporado em projeto de lei é bem diferente de não ser ouvido. O processo é democrático, só não é garantia de agradar a todos os interessados.

E convém ir além. Por que parte dos pleitos de desenvolvedores de games não vem sendo acolhida? A resposta é a falta de razoabilidade do que se pede.

Requer-se que um texto de lei disponha sobre detalhes operacionais, como enumerar as ferramentas utilizadas no desenvolvimento de softwares para facilitar a sua importação.

Descer ao nível de indicar e descrever cada ferramenta que pode ser empregada no desenvolvimento de um programa de computador não é adequado para uma lei. A lei, por sua natureza e técnica legislativa, adota uma abordagem mais ampla. Minúcias e pormenores da atividade são assuntos de competência do Executivo, são matérias de normas infralegais.

Ademais, em uma indústria altamente tecnológica, que muda e recria sua realidade todos os dias, incluir esse nível de detalhamento em lei é travar o setor, que diante de uma inovação se verá com o  desafio de alterar a legislação por meio do complexo processo legislativo bicameral. Ao passo que esses pormenores, se vierem em ato executivo, terão sua adequação a uma nova realidade de forma substancialmente mais célere, dependendo apenas do convencimento de um ministério.

Requer-se também que o projeto de lei crie um CNAE específico para a atividade de desenvolvimento de jogos. O CNAE é um código composto por 7 dígitos que identifica a atividade econômica exercida por um negócio e serve para determinar o seu enquadramento tributário.

Incluir um CNAE em texto de lei é completamente inapropriado, mais do que isso, infundado. Para os desavisados vale informar, a criação de um O CNAE não vem da lei, mas como informa o próprio site do Governo Federal, resulta de um trabalho conjunto das três esferas de governo, elaborada sob a coordenação da Receita Federal e orientação técnica do IBGE, com representantes da União, dos Estados e dos Municípios, no âmbito da Comissão Nacional de Classificação (CONCLA). Em resumo, um CNAE decorre de ato executivo, mais especificamente de uma resolução administrativa.

Por fim, parcela dos desenvolvedores de jogos requer ajustes redacionais na definição de jogos eletrônicos, sob a alegação que ela não seria abrangente o suficiente ou que causaria confusão entre os tipos de softwares existentes.

Os ajustes não têm sido acolhidos mais uma vez por falta de razoabilidade. A definição de jogo eletrônico contida no texto do PL 2796/21 contempla todos os setores sim, e não gera confusões, basta a leitura serena do artigo 2º parágrafo 1º.

Referido dispositivo define o jogo eletrônico como (i) o programa de computador que contenha elementos gráficos e audiovisuais, com fins lúdicos, em que o usuário controle a ação e interaja com a interface; (ii) o dispositivo central e acessórios, para uso privado ou comercial, especialmente dedicados a executar jogos eletrônicos; e (iii) o software para aplicativo de celular e/ou página de internet desenvolvido com o objetivo de entretenimento com jogos de fantasia.

Os ajustes pretendidos, na verdade mascaram um anseio não muito republicano de parte dos desenvolvedores de jogos: a inserção da expressão “obras audiovisuais”. Um ajuste sútil e aparentemente inofensivo mas que guarda por detrás de si, o desejo dos games serem enquadrados como elemento cultural e, assim, facilitar o acesso dos desenvolvedores a recursos da Lei Paulo Gustavo (Lei Complementar 195/22).

Mas o que diz essa lei e quais seriam as consequências de se qualificar jogos eletrônicos como obras audiovisuais?

A Lei Paulo Gustavo foi criada para incentivar a cultura e garantir ações emergenciais, em especial as demandadas pelas consequências do período da pandemia de Covid-19 no Brasil, que impactou de forma trágica o setor cultural nos últimos anos.

Para a recuperação do cinema, do teatro e da música, o Governo Federal destinou a Estados e Municípios R$ 3,8 bilhões. E nesse montante que parcela dos desenvolvedores de games estão de olho.

Mas é razoável isso? A resposta é não.

O setor de games vivenciou durante a pandemia um dos momentos mais espetaculares da sua recente história. Com a reclusão e as pessoas em casa com opções reduzidas de lazer, os jogos online foram altamente impulsionando e a indústria cresceu vertiginosamente.

Desviar recursos de áreas da cultura que verdadeiramente agonizaram durante a pandemia (cinema, teatro e música) para um setor pujante e que não precisa- de forma alguma – de assistência, soa, no mínimo, antiético.

Por isso retomo meu raciocínio. O papel pode até aceitar tudo, todo tipo de pretensão, mas felizmente juízes e parlamentares, democraticamente estão a postos, prontos para a todos ouvir, mas com autonomia para acolher apenas as sugestões pertinentes.

Pretensões infundadas, atécnicas, individualistas e imorais, naturalmente, não serão atendidas e isso não quer dizer que os interessados não foram ouvidos ou não participaram do processo legislativo, significa, tão somente, que não foram atendidos.

O PL 2796/21 precisa avançar, com sua redação como está, como já aprovada na Câmara dos Deputados e na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Emendas despropositadas com naturalidade devem ser rejeitadas, afinal, a técnica e o interesse coletivo falam mais alto que imprecisões legislativas e interesses individuais escusos. Os parlamentares já estão cientes desse desvio de finalidade pretendido por parte dos desenvolvedores de jogos e devem barrar suas manobras, afinal ninguém é bobo, não fosse assim, não teriam sido eleitos pelo povo como seus representantes.

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