Por Luciano Motta
O Clube de Futebol “Os Belenenses” é uma equipe lisboeta sediada no tradicional e charmoso bairro de Belém, exatamente o mesmo do famoso “Pastel de Belém”. A agremiação vai além de um clube de futebol, tendo outras modalidades, tais como: handball, basquetebol, natação, rúgbi, etc. Durante muito tempo, até a década de 1980, o time de futebol foi considerado um dos “quatro grandes” de Portugal, juntamente com Porto, Benfica e Sporting. Não só, durante a década de 1930, foi um dos detentores do maior número de títulos. Entretanto, nos últimos anos tem chamado a atenção dos noticiários lusos por outra situação e não por suas glórias e histórias.
No final dos anos1990, Portugal obrigou a todos os clubes que quisessem participar de competições profissionais a adotarem a formatação de um clube-empresa ou a continuarem sob a forma associativa mediante um estatuo reforçado. Dentre as opções, o clube associação poderia constituir uma Sociedade Anônima Desportiva (SAD), personalizando somente a equipe profissional de futebol. E o caminho escolhido pelo “Os Belenenses” foi justamente esse. Seguindo tendência de vários clubes de futebol portugueses, constituiu um clube-empresa que seria o responsável por todo o departamento de futebol.
Diante disso, surgiram duas nomenclaturas que, inclusive, guiará o presente texto: (I) o “Clube de Futebol ‘Os Belenenses’” (clube associação, clube fundador ou clube-mãe); (II) e “Os Belenenses Sociedade Desportiva de Futebol, SAD” (clube-empresa ou SAD). Por determinação legal, os contratos dos atletas profissionais e a licença desportiva deveriam ser transferidos para o clube-empresa, sendo a transferência dos demais bens que ordinariamente compõem o acervo patrimonial de um clube mera faculdade.
Assim, o clube fundador optou por manter o estádio de futebol, as instalações, a marca, o nome, o clube social, entre outros bens, sob sua titularidade. Para viabilizar o funcionamento, clube associação e clube-empresa estabeleceram um protocolo que regularia a relação entre as duas entidades, algo bem comum nesse modelo de negócio (Protocolo de Repartição de Direitos e Obrigações). Dentre outros assuntos de menor relevância, o clube-empresa passou a ter o usufruto do Estádio do Restelo e a autorização para a utilização da marca, nome e símbolo.
Importa esclarecer que nessa modalidade jurídica de clube-empresa existem dois tipos de ações: uma de categoria A, que deve pertencer exclusivamente ao clube formador, não podendo ser inferior a 10% do capital social e que lhe confere direitos especiais (ex.: direito de veto, indicação de um membro para o conselho de administração, etc.); e uma segunda de categoria B, ordinária.
Historicamente, desde 1999, momento em que “Os Belenenses” constituiu o clube-empresa, este se apresentou muito mais como uma mera roupagem, pois a presença de qualquer investidor sempre foi mínima, quase inexistente, sendo o clube associação “dono” de praticamente todo o clube-empresa.
Durante a década seguinte, mesmo diante desse modelo jurídico, tanto o clube associação quanto o clube-empresa continuaram a apresentar um quadro administrativo, desportivo e econômico críticos. Por essa razão, o “Os Belenenses” resolveu vender uma parcela significativa do clube-empresa para algum investidor alavancar o seu desempenho econômico e desportivo.
Assim, em 2012, o clube associação, por assembleia geral, aprovou a venda da maioria do capital social do clube-empresa para um fundo de investimento denominado Codecity Sports Management Lda. (a seguir, Codecity), uma sociedade limitada que prometia arrumar as finanças do clube, proceder uma gestão moderna e profissional e relevantes resultados desportivos.
Concomitantemente a essa compra, por meio de um acordo de acionistas, o clube associação teria direito, no futuro, a recompra da maioria das ações que foram vendidas. Passados dois anos, no momento em que o clube formador “Os Belenenses” requereu a recompra das ações que estavam sob a titularidade da sócia Codecity, esta não aceitou, alegando, basicamente, que essa ação poderia causar enormes prejuízos ao clube-empresa e aos investimentos que havia realizado. Em termos jurídicos, o que de fato ocorreu foi que, em março de 2014, a sócia Codecity resolveu o acordo parassocial alegando justa causa.
Esse primeiro imbróglio foi parar na “justiça” e o Tribunal Arbitral decidiu favoravelmente ao clube-empresa, determinado que o acordo estabelecido entre os sócios fosse extinto. A perda impôs uma dura derrota ao clube associação e aos seus torcedores. Agora, em termos práticos, e inexistindo qualquer forma de acordo, o clube-fundador já não mais teria o controle das decisões do clube-empresa.
Em 2018, a situação se complicaria ainda mais. Acorda-se do primeiro protocolo em que o clube associação permitia o uso de seu estádio, nome, marca e símbolos pelo clube-empresa? Pois é, o clube fundador decidiu denunciar (“rescindir” unilateralmente – 05-02-2018) o referido documento, de modo que os efeitos dessa decisão ocorressem justamente nesse ano. A partir de 30 de junho, o clube-empresa, detentor da licença desportiva e dos contratos dos atletas profissionais, deveria negociar novos termos com o clube associação se quisesse utilizar o Estádio do Restelo e os símbolos, nome, marca do “Os Belenenses”.
Como já esperado, o atrito entre os sócios já era enorme e o clube associação optou por criar um novo clube de futebol. Resolveu, dessa maneira, adquirir uma nova licença desportiva começando a sua caminha do último nível do futebol português: a primeira divisão distrital da Associação de Futebol de Lisboa.
Mesmo com o fim do protocolo, o clube-empresa continuou a utilizar o nome e demais denominações conexas. Vez mais, uma situação inusitada: dois clubes com o mesmo nome e símbolo, jogando em divisões completamente distintas. O clube-empresa atuando na primeira divisão de futebol profissional e o “novo” clube associação no último escalão (amador).
Irresignado com a situação, o clube formador decidiu ajuizar uma demanda na justiça portuguesa, perante o Tribunal da Propriedade Intelectual, pleiteando que o clube-empresa fosse proibido de utilizar sua marca, emblema, hino e lema, afinal de contas, o protocolo já havia cessado. Como era de se esperar, dessa vez o clube-empresa saiu derrotado tendo sido obrigado a modificar o seu nome e escudo – assim, por exemplo, não mais poderia utilizar o emblema da Cruz de Cristo e nem o lema “Com a Certeza de Vencer”.
E no meio desse fogo cruzado: os torcedores. A qual time torcer? Aquele histórico e glorioso, mas que teria que recomeçar a sua caminhada do zero ou ao “sem história” que disputava a principal competição nacional? Qual camisa comprar? Tradição ou dinheiro?
Para piorar a situação, uma incerteza jurídica. Recorda-se que o clube associação continuou detentor de 10% do clube-empresa? Pois bem, a legislação portuguesa determina que esse seria um percentual mínimo, mas não afirma se isso seria direito ou dever. A finalidade por detrás dessa norma é a de justamente resguardar e proteger os interesses do clube formador, estabelecendo um percentual mínimo que ele tem direito em um clube-empresa que eventualmente viesse a ser constituído. Agora, imagine a seguinte situação: ser obrigado a fazer parte de algo que não se deseja. Como uma empresa pode ter êxito nesses termos?
Na última semana, a assembleia geral do clube associação, após consultar juristas – com o qual se concorda com a posição, ou seja, o clube associação tem a faculdade (e não obrigação) de deter no mínimo 10% do capital social do clube-empresa, podendo abrir mão deste, se entender necessário – aprovou a venda da parcela restante, por mil euros.
Dito de outra forma, em toda essa história, o que efetivamente houve foi a aquisição da licença desportiva. O clube-empresa, agora “desvinculado” do clube-mãe, simplesmente começou a sua jornada diretamente do primeiro escalão do futebol português. Logicamente que do ponto de vista do direito societário essa não é a melhor conclusão, pois existiu todo um contexto fático e jurídico por detrás. Mas, para o torcedor sim, foi isso que ocorreu; o clube de seu coração passou a disputar a última divisão e o direito de jogar o principal nível fora “rapinado” pelo sócio investidor.
A deliberação de se vender o percentual restante ainda não se materializou, e poderá ser contestada na justiça. Mas, ao que parece, esse filme está a chegar ao fim, mesmo após quase uma década. É “Os Belenenses” no plural, e só existe um, localizado no Estádio do Restelo.
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Luciano Motta é mestre em Direito Empresarial e especialista em Direito Desportivo e Negócios do Esporte e em Direito de Empresa.
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Crédito foto: divulgação site clube.