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Os Eternos puxadinhos da Lei Pelé

Quando sancionada a Lei nº 9.615, em março de 1998, muito se esperava da novel legislação quanto à modernização do esporte no Brasil, principalmente no tocante às relações trabalhistas entre clubes e atletas, mais especificamente na modalidade futebol.

Chegou-se a afirmar que se tratava de uma nova Lei Aurea, uma vez que se extinguia o instituto do passe, o qual aprisionava o atleta ao clube, mesmo após o final do contrato de trabalho.

Nem bem a lei entra no ordenamento jurídico, e ela sofre alterações por força de medidas provisórias, reiteradamente publicadas, e várias leis posteriores, com o que se desfigurou a norma, a tal ponto que alguns se negam chamá-la de Lei Pelé, pois tais alterações a distanciaram de sua redação original.

Cumpre ressaltar, que tantas alterações realmente desfiguraram a lei, mas pior, a desfiguraram a ponto de atacar seus princípios e particularmente os princípios de Direito do Trabalho.

Na parte trabalhista, começa-se pela falta de técnica, pois confunde jornada com mês de trabalho; chama o contrato de trabalho de Contrato Especial de Trabalho(CETD), excluiu horas extras, coloca-se horas extras, mas somente se ultrapassar as 44 semanais, despreza-se, pois as normas constitucionais, e, ainda, dá aos que apenas interpretam a lei sob os olhares ideológicos, conclusões estapafúrdias, como entender que somente existirá contrato de trabalho entre clubes e atletas se for celebrado pela forma escrita, o que fere os mais comezinhos princípios de Direito do Trabalho, e aqui cito o princípio do contrato realidade.

Para que se tenha ideia de como são tratados os institutos de Direito do Trabalho pelos reformadores da lei, usam destas alterações para criarem um flagrante desequilíbrio entre as partes envolvidas num contrato de trabalho desportivo.

Quero me ater somente a um instituto, o do Direito de Arena, que agora foi objeto de nova alteração por força da Lei nº 14.205, de 17 de setembro de 2021.

O Direito de Arena surge em 1973 por força da Lei dos Diretos Autorais, Lei nº 5.988, de 14 de dezembro, cujo art. 100 assim conceituava e determinava:

Art. 100. A entidade a que esteja vinculado o atleta, pertence o direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão, por quaisquer meios ou processos de espetáculo desportivo público, com entrada paga.

Parágrafo único. Salvo convenção em contrário, vinte por cento do preço da autorização serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas participantes do espetáculo.

Esse direito foi gestado em nosso parlamento desde 1967 até chegar à redação acima. Tal direito surge para indenizar os clubes pela perda de venda de ingressos aos torcedores para assistirem aos jogos, pois estes ficavam no conforto de suas casas para acompanhar as partidas.

Como se vê acima, o legislador de 1973, direcionou vinte por cento do que os clubes recebessem pela autorização para que as partidas fossem transmitidas ao vivo, aos atletas que participassem das mesmas.

Até então, o Direito de Arena era estudado apenas pelos civilistas. Em 1997 apresentamos e defendemos tese de doutoramento junto à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, intitulada “Os atletas profissionais de futebol no Direito do Trabalho”, e dentre outros pontos, nosso trabalho concluiu pela natureza jurídica do Direito de Arena na parte destinada aos atletas, como de natureza remuneratória, equiparando o instituto às gorjetas, aplicando-se o previsto na Súmula 354 do TST.

Para nossa alegria, o entendimento acima tornou-se jurisprudência vencedora nos tribunais trabalhistas do Brasil.

Em 2011, a Lei Pelé sofre drásticas alterações, e quanto ao Direito de Arena, trouxe, para resolver o problema dos clubes (ou seja, que não queriam pagar aos atletas o que o Direito do Trabalho lhes outorgava), trouxe a modificação abaixo:

Art. 42.  Pertence às entidades de prática desportiva o direito de arena, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, de espetáculo desportivo de que participem.                    (Redação dada pela Lei nº 12.395, de 2011).

§1º Salvo convenção coletiva de trabalho em contrário, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais serão repassados aos sindicatos de atletas profissionais, e estes distribuirão, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo, como parcela de natureza civil.

Em nossos escritos ao longo de uma década, nos posicionamos contra tal alteração, pois é flagrante, com a  devida vênia,  o prejuízo que os atletas sofreram com ela. Um direito de natureza trabalhista assegurado aos atletas por quase 40 anos é simplesmente reduzido e, ainda, por força de lei lhe retira o caráter remuneratório, ao nosso sentir fere de morte o princípio do não retrocesso social.

Em 2020, ano da Pandemia da COVID 19, o Governo Federal editou Medida Provisória que visou mexer novamente no Direito de Arena:

Art. 42.  Pertence à entidade de prática desportiva mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo, consistente na prerrogativa exclusiva de negociar, autorizar ou proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens,por qualquer meio ou processo, do espetáculo desportivo.        (Redação dada  pela Medida Provisória nº 984, de 2020)              (Vigência encerrada)

§ 1º Serão distribuídos, em partes iguais, aos atletas profissionais participantes do espetáculo de que trata o caput, cinco por cento da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais, como pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.(Redação dada  pela Medida Provisória nº 984, de 2020)

Essa MP não foi transformada em lei, voltando-se à redação de 2011.

Agora, o Art. 42, da Lei nº 9.615/98, foi alterado pela Lei nº 14.205, de 17 de setembro de 2021, e tem esta redação:

Art. 42-A. Pertence à entidade de prática desportiva de futebol mandante o direito de arena sobre o espetáculo desportivo.

§1º Para fins do disposto no caput deste artigo, o direito de arena consiste na prerrogativa exclusiva de negociar, de autorizar ou de proibir a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens do espetáculo desportivo, por qualquer meio ou processo.

§2º Serão distribuídos aos atletas profissionais, em partes iguais, 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos desportivos audiovisuais do espetáculo desportivo de que trata o caput deste artigo.

§3º A distribuição da receita de que trata o § 2º deste artigo terá caráter de pagamento de natureza civil, exceto se houver disposição em contrário constante de convenção coletiva de trabalho.

§4º O pagamento da verba de que trata o § 2º deste artigo será realizado por intermédio dos sindicatos das respectivas categorias, que serão responsáveis pelo recebimento e pela logística de repasse aos participantes do espetáculo, no prazo de até 72 (setenta e duas) horas, contado do recebimento das verbas pelo sindicato.

§5º Para fins do disposto no § 2º deste artigo, quanto aos campeonatos de futebol, consideram-se atletas profissionais todos os jogadores escalados para a partida, titulares e reservas.

§6º Na hipótese de realização de eventos desportivos sem definição do mando de jogo, a captação, a fixação, a emissão, a transmissão, a retransmissão ou a reprodução de imagens, por qualquer meio ou processo, dependerão da anuência das entidades de prática desportiva de futebol participantes.

§7º As disposições deste artigo não se aplicam a contratos que tenham por objeto direitos de transmissão celebrados previamente à vigência deste artigo, os quais permanecem regidos pela legislação em vigor na data de sua celebração.

§8º Os contratos de que trata o § 7º deste artigo não podem atingir as entidades desportivas que não cederam seus direitos de transmissão para terceiros previamente à vigência deste artigo, poderão cedê-los livremente, conforme as disposições previstas no caput deste artigo.”

Vejamos o que se abstrai desse novo puxadinho.

Insistiu o legislador em manter a inconstitucional redução da parte cabível aos atletas, ou seja, os vinte por cento da redação primitiva pelos cinco por cento fixados na reforma de 2011.

Quanto à natureza jurídica da parte devida aos trabalhadores, também insistiu o legislador em mudar a natureza jurídica de um instituto por “canetada”, e não pelo Direito, que é o único que pode dar aos institutos jurídicos sua natureza, e não a lei.

Interessante notar que a própria lei afirma que a natureza do Direito de Arena na parte destinada aos atletas poderá ter natureza diversa da civil (entenda-se remuneratória), por força de norma coletiva! Quer nos parecer até um ato falho do legislador, pois os sindicatos podem sempre criar normas mais favoráveis nas normas coletivas, seja por Convenção Coletiva de Trabalho (CCT) ou Acordo Coletivo (AC), ou seja, disse o que nem precisava ser dito, o que reforça nossa tese das redações sofríveis da parte trabalhista da Lei nº 9.615/98.

Quanto ao repasse aos sindicatos, a ideia é fazer com que estes fiscalizem o pagamento da verba aos atletas, mas não nos parece salutar, pois demora mais tempo para que cheguem aos atletas tais valores. Quanto à fiscalização, bastava se exigir que os clubes enviassem mensalmente a comprovação do pagamento, da mesma forma que ocorre com os recolhimentos destinados à Previdência Social.

A lei concede um prazo de 72 horas para o repasse aos atletas pelos sindicatos, todavia não diz qual o prazo para que os clubes enviem os valores para os sindicatos.

A lei considera atletas todos os que participem das partidas, ou seja, até mesmo os não profissionais, e inclui jogadores titulares e reservas, ponto que já não tinha mais discussão, mas fez bem deixar isso claro.

O direito de cessão agora volta a ser do clube mandante, ou seja, regressa-se ao tempo da criação do Direito de Arena e outorga tal direito apenas àqueles, o que nos parece mais justo, e em consonância com a realidade, pois os clubes de futebol têm negociado seus direitos de transmissão com plataformas de streaming e não só com emissoras de televisão.

Como já nos posicionamos quando da MP 984/20, o valor do repasse do Direito de Arena será feito pelo clube mandante apenas aos seus atletas.

Problemas teremos quando o mando não for de um determinado clube, pois a lei diz que ambos deverão anuir com a cessão e autorização. Mas, e se um dos clubes não aceitar o valor oferecido ou, ainda, não quiser autorizar a transmissão. Os magistrados que já se debrucem sobre o tema, pois pensamos que serão chamados a resolver essa situação, já que o legislador não se preocupou em dar solução para o caso ora vislumbrado.

Por derradeiro, a lei respeita o ato jurídico perfeito quando afirma que aos contratos vigentes não se aplica o nela apresentado, podendo se valerem apenas os clubes que na data da publicação da norma ainda não o fizeram, e, o mais complicado, e nos parece que esta é a finalidade da lei nesse ponto, se um clube já tinha um contato vigendo com uma empresa de transmissão, mas seu adversário não, este poderá negociar livremente.

Esta é nossa visão preliminar tema.

Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo


Domingos Sávio Zainaghi. Mestre e doutor em Direito do Trabalho pela PUSP. Pós-doutorado em Direito do Trabalho pela Universidad Castilla-La Mancha, Espanha. Presidente honorário do Instituto Iberoamericano de Derecho Deportivo, Coordenador Acadêmico da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo-SBDD. Membro da Academia Brasileira de Direito Desportivo-ANDD e o Instituto Brasileiro de Direito Desportivo-IBDD. Advogado.

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