Essa será a Copa das Copas,
uma Copa para ninguém esquecer.
Dilma Rousseff
Por Pitágoras Dytz
Há fatos que ainda que não os presenciemos in loco, se inscrevem em nossas memórias de maneira indelével e nos fazem rememorar onde estávamos quando aconteceram. Me lembro daquela manhã de domingo de um longínquo 1º de maio de 1994. Como muitos, naquele domingo, e como em tantos outros domingos, na companhia de meu pai e de um ou outro irmão, estava diante da televisão e, estarrecido e como transportado para uma outra dimensão, não sensorial, vi o bólido azul e branco perder o traçado da curva e espatifar-se contra a proteção lateral na Tamburello. Ali, há pouco mais de 30 anos, morria Ayrton Senna. Os domingos nunca mais foram os mesmos. Me recordo também de onde estava na manhã de 11 de setembro de 2001. Comprava um maço de cigarros na Churrascaria Centenário, em Santa Cruz do Sul/RS, quando, tão chocado e incrédulo quanto naquele 1º de maio, numa televisão ainda de tubo, acompanhei os dois aviões espatifarem-se contra as torres novaiorquinas. Fumei quase a carteira de cigarro inteira acompanhado as cenas que, já mais experimentado nas coisas da vida, sabia que mudariam nosso mundo. E mudaram.
Juliano Alves Pinto deve lembrar-se da noite do dia 3 de dezembro de 2006, quando deu seus últimos passos antes de o carro em que estava sofrer um acidente no qual perdeu o irmão e o movimento das pernas.
E, tal como eu, certamente ele também se lembra de onde estava há exatos dez anos[1]. Nesse dia, um Dia dos Namorados atípico no Brasil, meu caminho cruzou o de Juliano. Talvez tu não te recorde dele, mas tenho certeza de que o teu caminho também cruzou com o dele naquele 12 de junho de 2014. Eu não preparava um jantar romântico nem fizera reserva em um restaurante qualquer de Brasília, onde vivia desde 2010, e onde meus dois filhos nasceram, eventos cujos instantes exatos, inclusive os minutos, recordo como se fossem agora. Sentado na minha sala, no oitavo andar do Ministério do Esporte, na Esplanada dos Ministérios, numa televisão já de tela plana, sob a narração de Galvão Bueno, acompanhei, por meio de uma imagem recuperada, quando, anos depois, Juliano voltava a dar um novo passo. Vestindo um exoesqueleto idealizado por Miguel Nicolelis, o paulista dava o pontapé inicial da Copa do Mundo FIFA 2014. Imagino que, naquele momento, ainda que por motivos um tanto distintos como são os motivos de foro íntimo, ambos coincidíssemos no sentimento de alegria.
Embora, como Coordenador-geral de Grandes Eventos Esportivos, da Consultoria Jurídica junto ao Ministério do Esporte, já estivesse envolvido na preparação da Copa desde 2011, ao final de 2012 eu assumira, ainda que informalmente, a função de Consultor Jurídico – o primeiro advogado público a ocupar o posto desde a criação da pasta, inclusive sob a forma de Secretaria Nacional. As tarefas eram múltiplas, as viagens intensas, a expectativa pelo sucesso da empreitada era imensa, o peso da responsabilidade, indizível. Não havia um dia em que, apesar da certeza de que fazíamos o melhor que podíamos – e, muitas vezes, superássemos desafios inauditos – a apreensão – benfazeja, é verdade, pois nos fazia manter os pés no chão – não se apresentasse sob a forma da pergunta: Dará certo?
O pontapé inicial foi um momento de certo alívio. Com um leve bico na Brazuca – segundo Dorrit Harazim, um gesto comparável ao de Neil Armstrong em 1969[2] – não só o chute no traseiro do Brasil, ameaçado por Jerôme Valcke em março de 2012, embora não esquecido, ficara para trás, mas punha fim à longa fase de preparação, tão criticada e cheia de solavancos políticos – quem não se lembra das jornadas de junho de 2013, os cartazes pedindo ‘escolas, metrôs, trens, ônibus, barcas e hospitais “padrão FIFA”’, ou a tentativa de invasão do Itamaraty num 20 de junho daquele mesmo ano, fato de triste lembrança – e marcava o início da execução da hercúlea empreitada.
A Copa do Mundo voltava ao Brasil, o País do futebol, dono de uma hegemonia incontestável e incontrastável construída com cinco títulos, um Rei, dribles desconcertantes e apresentações inesquecíveis mesmo na derrota, como em 1982. A Copa de 2014 seria a “Copa das Copas”, como disse a então Presidenta Dilma Rousseff, ecoando o slogan oficial. Foi a Copa das expectativas – em sua esmagadora maioria, negativas, com a Der Spiegel de 12 de maio, cuja capa estampava uma Brazuca pegando fogo, um meteoro em direção ao Rio de Janeiro ao fundo, e com a manchete, Tod und Spiele, Brasilien vor der Fuβball-WM[3], servindo de melhor ilustração, mas sem deixar muito atrás a imprensa nacional, com seu proverbial pessimismo em relação a tudo o que é pátrio, ou a #nãovaitercopa inundando o passado Twitter – a de que a organização desse errado e que a seleção se sagrasse hexacampeã. Esse era o sentido da manchete de capa da Folha de São Paulo de exatos 10 anos atrás[4]. Para muitos, fora de campo, era tempo de esperar a Copa começar para os decantados problemas aparecerem e não seria por falta de aviso; dentro das quatros linhas, jogar era mera formalidade. Afinal, havíamos vencido a Copa das Confederações no ano anterior. E jogando bem. Era questão de tempo até que a taça nos fosse entregue num Maracanã em êxtase depois da vitória sobre nossos hermanos argentinos. Antes mesmo do jogo de abertura – contra os croatas, de amargas e recentes lembranças – esse era o quadro do imaginário popular. A realidade acabou sendo outra; eles chegaram, nós não.
De fato, as jornadas de junho de 2013 sobrecarregaram ainda mais o ambiente. A expectativa e a apreensão por um bom resultado fora de campo cresciam a cada dia, recaíam sobre a FIFA – já às voltas com o escândalo do Qatargate[5] e iria desaguar, logo mais, no FIFAGate – e sobre os governos, especialmente o federal, às portas de uma eleição presidencial que se mostrou uma das mais acirradas. Mas, por esse lado, e como disse a mandatária brasileira, o pessimismo durou pouco. Apesar das falhas, de segurança – a invasão chilena ao Maracanã como o ponto alto, e que encurtou a estada dos vizinhos sulamericanos, ameaçados de deportação se não deixassem o país[6], e que demonstrou a fragilidade do ‘padrão FIFA’ e obrigou a uma mudança na organização, levando forças policiais para dentro das arenas[7], de logística interna nas arenas, sob responsabilidade da FIFA, com suas enormes filas para compra de comida e bebida[8], ou de trânsito[9], dos protestos que pipocavam mesmo no dia do início do torneio[10], de greve no metrô de São Paulo[11], assim que a bola rolou, o apoio à sua realização saltou de 54 para 66%, ao passo que a oposição a ele caiu de 39 para 27%; a organização do evento foi considerada “ótima ou boa” por 56%, “regular” por 31% e “ruim” por apenas 9%, índice que estava em 20% antes da partida inicial[12], o que confirmou a predição feita pela mandatária durante pronunciamento em rede nacional no dia 10 de junho daquele ano[13]. Em 11 de junho, o Correio Braziliense noticiou que os turistas estavam apaixonados por Brasília; o céu era de brigadeiro para a aviação civil durante a Copa, disse o Brasil Econômico em 17 de junho, registrando-se índices de atraso de voos inferiores aos padrões internacionais[14], o que mostrava que as obras planejadas cumpriam sua função. Não faltaram obras inacabadas, inclusive com resultados fatais, como as mortes ocorridas com a queda de um viaduto em Belo Horizonte. Mas a Copa das Copas, ou A Copa que divide o Brasil, como estampou a revista Época na sua edição de 9 de junho, foi também a Copa do 4G[15], que a transformou na Copa compartilhada, como o disse o Correio Braziliense de 16 de junho daquele ano, e dos Estrangeiros empolgados, segundo o mesmo periódico afirmou na edição seguinte, ou das soluções verdes, que movimentaram a cadeia de fornecedores[16]. Nem se havia chegado à metade da competição e a Istoé perguntava, A melhor Copa da História?[17]. Apesar do jogo contra, foi a Copa que rendeu 12 bilhões aos bares naquele junho de uma década atrás, segundo O Estado de São Paulo do dia 28 de junho de 2014 e viu quase 500 mil estrangeiros atravessando as fronteiras nacionais[18].
Já dentro de campo, a vigésima edição teve momentos gloriosos e também os traumáticos, todos igualmente inesquecíveis, da mordida de Luisito Suarez ao gol de peixinho de Van Persie. Foi a de maior média de gols na primeira fase desde 1958 – isso que os oito gols da fatídica goleada não haviam entrado na conta – segundo noticiou O Estado de São Paulo do dia 18 (E13). Foi o certame da ‘incontinência’ suíça, com os torcedores de rosto pintado fazendo fondue em frente ao Estádio Nacional de Brasília, a competição das alegres e coloridas invasões das torcidas, colombiana na Capital Federal, quando um dos entrevistados pelo Correio Braziliense afirmou, “para mim, está sendo algo incrível”[19], dos uruguaios transformando Itaquera em Montevidéu por um dia[20], dos argentinos assando carne num carrinho de supermercado à espera do golaço de falta de Messi contra a Nigéria – aliás, um jogo de golaços, que assisti in loco, mesmo ardendo com quase 40º de febre – na minha amada Porto Alegre, onde nasceu o Caminho do Gol, onde, cantando e festejando, mais de 50 mil holandeses, australianos e brasileiros, inundaram as ruas de tons de amarelo e laranja a caminho do Estádio Beira-Rio. E por falar em Holanda, foi na goleada de 5 a 1 sobre a Espanha que o tal ‘peixinho’ aconteceu.
Mas não houve placar mais elástico do que o que aquele que, num 8 de julho, assim como havia ocorrido em 1969, também num mês de julho, com o pouso do homem na Lua – e apenas para ficar no mesmo passo de Harazim, milhares de pessoas ficaram de queixo caído mundo afora diante de um sonoro e retumbante, com notas wagnerianas, 7 a 1. Era o Mineiraço, tão cruel conosco, os campões antecipados, quanto o fora o Maracanaço. Os cinco gols aplicados pelos [também incrédulos] alemães apenas no primeiro tempo mais pareciam uma improvável combinação da Quina – tentos marcados aos 11, 23, 24, 26 e 29 minutos da partida – do que um jogo de futebol envolvendo duas seleções de tal envergadura, donas de, até então, oito títulos mundiais. Não há como esquecer a cena de torcedores de caras borradas pelas lágrimas e contorcidas em expressões catatônicas.
E assim como houve, e ainda haja, quem creia que Armstrong nunca deu o dúplice passo – pequeno para o homem, um salto gigantesco para a Humanidade, que, diga-se de passagem, nunca mais foi a mesma – parece-me que há, senão uma propensão à negação, uma tentativa estoica de elidir as representações [que essa lembrança nos evoca], ao menos uma forte inclinação a não lembrar que, há exatos dez anos, aqui houve uma Copa do Mundo. Em certa medida, essa tentativa de deliberado esquecimento até faz sentido, dado que representação é a palavra que, vez ou outra, escolhemos como o equivalente à grega phantasia, expressão de dupla face, uma sensível, o intelecto, outra, virtual, na qual o sentido atribuído pelo pensamento se impregna, que, acossado pelo phantaston, que confunde os sentidos, acabe criando não apenas uma fantasia, mas também phantasmas. Não é assim que nominamos nossos traumas futebolísticos?
Apesar das expectativas contrárias, da hashtag, ou da mistura de emoções, como disse a versão on line da Time, em 9 de junho de 2014, houve uma Copa bem aqui debaixo dos nossos narizes. Os estádios, os aeroportos, os corredores de BRT’s, e as obras inacabadas, as leis gerais e os copos da Copa, a memória amarga do vermelho e preto alemão, o esquecimento de 1950 pelo novo trauma, estão aí para provar que ela ocorreu. E ela foi um sucesso tanto naquilo que expressamente se propôs, mostrar um País capaz de enfrentar desafios como nação, de organizar mais um mega evento – sem esquecer que já temos, senão a maior, ao menos uma das maiores, festas do planeta, o Carnaval, ocorrendo todos os anos – e fazê-lo bem. O fizemos. Não ganhamos em campo, mas perdemos segundo as regras do jogo, e não nos deixamos tentar por subterfúgios do jogo sujo, como os que põem em dúvida a conquista italiana de 1934. Jogamos com o que tínhamos. Gastamos dinheiro público mais do que se deveria? Talvez. Talvez pudesse ter sido diferente. Houve superfaturamento, corrupção? É bem possível que tenha havido. No que nos dizia respeito como representantes do Governo Federal, trabalhamos incessantemente para que os custos fossem os menores, que não se gastasse um centavo a mais do que o necessário. Assim foi com o RECOPA – Lei nº 12.350, de 20 de dezembro de 2010. Os desvios foram coibidos quanto descobertos a tempo, ou punidos quando a bola já havia entrado e a jogada posta em revisão.
Mas por que, quando se completa uma década do último evento em que não apenas mostramos um poder de organização e desenvolvimento de um projeto nacional, num país continental que, desde então – e apesar dos Jogos Olímpicos de 2016 – nunca mais se repetiu, uma organização que faltou aos jogadores naquele inolvidável 8 de julho de 2014, parecemos tão dispostos a esquecer de que houve uma Copa aqui?
Terá sido o trauma juliano suficiente para servir de ponto de apagamento do período de união na alegria da vitória e na decepção da retumbante derrota? Terá força suficiente para negar o fato de que o mundo se encantou conosco como nação, sem dissidências maiores entre si até então? De que, quando queremos, somos capazes de realizar feitos imemoriais e em padrão superior ao pretenso padrão FIFA? Que somos capazes de ser um só povo, um só país apesar das diferenças?
Àqueles que estavam na tribuna de honra no dia da abertura é compreensível o temor da lembrança, pois dois deles especialmente – Temer e Blatter – viram seus sonhos políticos soterrados por escândalos de corrupção e, cada um à sua maneira, foram vítimas de seus próprios esquemas. Mas todos os demais, nós, não temos por que esquecer e, muito menos, do que nos envergonhar. Não é porque sofremos um 7 a 1 que valemos menos. Não é porque a amarelinha foi apropriada como símbolo representativo de valores com os quais a maioria de nós – ao menos os sensatos – não comunga que devemos virar as costas ao que ela representa como elemento de unidade nacional. O choque, o trauma, nos permite reorientar nossos caminhos. A Alemanha aproveitou o que aconteceu em 2006 e se reformulou em termos estruturais e estruturantes do futebol. Desaguou na conquista de 2014. O que nós aprendemos com a nossa experiência? A tentativa de apagamento dessa memória coletiva nos deixou estagnados. Apesar de uma outra iniciativa, como o PROFUT ou a tíbia lei das SAF’s, o futebol continua vivendo como se estivesse parado no tempo; nada de muito novo em termos de gestão, que ainda usa vestes feudais para se apresentar numa feira capitalista; os clubes seguem endividados e à espera de um milagre de alguém que lhes ofereça a pedra filosofal. Fez-se uma proposta de nova legislação que de novo nada tem e nem poderia, pois buscava apenas compilar o já existente, vetusto e sem viço.
Mas, para que isso aconteça, é essencial não esquecermos e, acima de tudo, rememorarmos. Rememorar que os phantasmas não deixarão de nos assombrar apenas porque deixamos de pensar neles. Se apartarão de nós quando entendermos como e com qual finalidade os criamos, um exame aprofundado das razões que permitiram ao phantaston impregnar-nos de falsas phantasias, ou tal qual o velho dickensiano Scrooge, sermos arrastados por eles através dos tempos até uma eventual redenção. Mas não nos esqueçamos que Dickens era mera fantasia. Ou seria realidade. Já não sei, já não lembro. Só lembro que houve uma Copa, uma para ninguém esquecer, como disse Dilma. E que haverá outra, o que me faz pensar se nos lembremos dela ou se será mais um dos fantasmas a nos assombrar, mais um dos fantasmas das Copas passadas.
Crédito imagem: Pinterest
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Escritor, Advogado da União, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte
@pitagoras_dytz
[1] Folha de São Paulo, 15 de junho de 2014.
[2] Agora é torcer, A hora da paixão universal, O Globo, 12 de junho de 2014.
[3] Tradução livre: Morte e jogos, Brasil antes da Copa do Mundo.
[4] Copa começa hoje com seleção em alta e organização em xeque.
[5] Valor Econômico, 10 de junho de 2014.
[6] Planalto decidiu punição a chilenos, Lance!, 19 de junho de 2014.
[7] Governo reage a erros na segurança, O Estado de São Paulo, 18 de junho de 2014; Reforço no Maracanã, PM terá mais 600 soldados, O Globo, 21 de junho de 2014.
[8] Sem e sem comida, torcida não perde humor, Valor Econômico, 18 de junho de 2014; Combinação explosiva, Falta comida, sobra bebida, O Globo, 20 de junho de 2014.
[9] Tarde de segunda deve ter trânsito lento, O Estado de São Paulo, 21 de junho de 2014.
[10] Moradores 3, Ativistas 1 e Ativistas são vaiados nos atos ao vibrar com gol da Croácia, ambos publicados pela Folha de São Paulo, em 13 de junho de 2014.
[11] Governo demite 42 metroviários; greve em SP é suspensa até abertura da Copa, O Estado de São Paulo, 10 de junho de 2014.
[12] Os números são da revista Veja, de 25 de junho de 2014, O pessimismo diminuiu, p. 115.
[13] Dilma diz que ‘pessimistas entram perdendo’ na Copa, Folha de São Paulo, 11 de junho de 2014.
[14] Índice de atraso de voos é inferior ao padrão internacional, O Globo, 17 de junho de 2014.
[15] Evento traz uso de 4G em larga escala, Valor Econômico, 17 de unho de 2014.
[16] Valor Econômico, 17 de junho de 2014.
[17] Edição de 25 de junho de 2014.
[18] Quase meio milhão entrou no país em junho, mês da Copa.
[19] Edição do dia 20 de junho de 2014.
[20] O Estado de São Paulo, 20 de junho de 2014.