Por Igor Serrano
Athletic Club x Atlético de Madrid – El País Brasil
18/03/2019, Madri-Espanha: 60.739 presentes. 04/03/2019, Cidade do México-México: 51.211 presentes. 30/01/2019, Bilbao-Espanha: 48.121 presentes. 05/05/2018, Londres-Inglaterra: 45.423 presentes. 24/03/2019, Turim-Itália: 39.027 presentes. Se você pensou que esses dados eram referentes às últimas turnês mundiais de Madonna ou U2, errou feio. Os números são de cinco partidas de clubes (Atlético de Madri x Barcelona, Monterrey x Tigres, Athletic Club x Atlético de Madri, Arsenal x Chelsea e Juventus x Fiorentina, respectivamente) do futebol de mulheres[1], em um intervalo de aproximadamente um ano, provocando euforia em boa parte do noticiário esportivo, o mesmo que, no Brasil, só lembra da modalidade nas Olimpíadas ou Copa do Mundo.
Mas se muita gente (homens, geralmente) ainda insiste em dizer que “é chato!”, “não dá para assistir!”, “tem que reduzir o tamanho do campo e das traves, coitadas!” etc., o que explicaria o “súbito” alto grau de interesse demonstrado mundialmente?
Muita gente não sabe, mas mulheres jogando futebol com multidões nas arquibancadas não são uma novidade. Outras partidas recentes, em solo brasileiro, também poderiam ser destacadas:
Iranduba x Santos – Brasileiro 2017 – Arena da Amazônia, Manaus – 25.371 presentes
Brasil x Suécia – Olimpíadas Rio 2016 – Maracanã, Rio de Janeiro – 70.454 presentes
Brasil x Austrália – Olimpíadas Rio 2016 – Mineirão, Belo Horizonte – 52.660 presentes
Alemanha x Suécia – Olimpíadas Rio 2016 – Maracanã, Rio de Janeiro – 52.432 presentes
E já que nos aproximamos da Copa do Mundo da França, impossível não relembrar o Mundial de 1999, disputado nos Estados Unidos e vencido pelas anfitriãs diante das chinesas, com incrível média de público (alguns superiores aos da Copa do Mundo de 1994 conquistada por Romário e cia no mesmo país):
EUA x Dinamarca – Copa do Mundo 1999 – Giants Stadium, Nova Jersey – 79.000 presentes
EUA x Nigéria – Copa do Mundo 1999 – Soldier Field, Chicago – 65.000 presentes
Brasil x Itália – Copa do Mundo 1999 – Soldier Field, Chicago – 65.000 presentes
EUA x China – Copa do Mundo 1999 – Rose Bowl, Los Angeles – 90.185 presentes
Mais do que isso, muito antes de existir Copa do Mundo de futebol de homens, da invenção da televisão e da ida à lua, na Inglaterra, o futebol de mulheres já era acompanhado por muita gente.
É comum associar aos ingleses o “título” de criadores, o que é impreciso, já que existem registros em diversos povos ancestrais pelo mundo (inclusive algumas tribos indígenas no Brasil) da prática de rituais que se assemelhavam ao esporte de pontapés na bola. O grande feito deles, de fato, foi, em 1863, a fundação da Football Association e o estabelecimento das regras da prática (que foram sendo alteradas com o decorrer dos anos diante da inicial semelhança ao rugby).
Destaque-se que apesar da F.A. ter sido fundada por membros da elite inglesa, rapidamente o futebol se tornou popular por lá, principalmente por conta dos operários, que viam na prática uma opção de lazer relativamente acessível diante das exaustivas jornadas, as condições insalubres e os salários miseráveis das fábricas. Muitos clubes ingleses, como o Manchester United, surgiram a partir de equipes criadas (e às vezes até mesmo incentivadas pelos patrões) para que os funcionários jogassem.
Uma dessas indústrias estava localizada em Preston e chamava Dick, Kerr and Co. Ltd. Inicialmente produzia para o ramo ferroviário, mas com o passar do tempo, em 1915, tornou-se fabricante de armamentos, graças ao advento da Primeira Guerra Mundial, responsável por mudar o escopo da empresa, o corpo de funcionários e a sociedade em geral, já que muitos homens foram convocados para guerra.
Com o esvaziamento de número considerável de postos de trabalho (até então exclusivamente masculinos), muitas mulheres foram contratadas e, em pouco tempo, incorporadas à rotina, que passava inevitavelmente pela prática do futebol no tempo livre.
O que iniciaria de forma tímida e descompromissada nos jardins da Dick, Kerr and Co. Ltd., em pouco tempo passou a ser tratada de forma séria, ao ser formada uma equipe, que também se tornaria fonte de arrecadação de verbas para causas sociais. No Natal de 1917, o time Dick Kerr’s Ladies estreou com vitória de 4×0 sobre o da Arundel Coulthard Factory diante de dez mil pessoas, no estádio Deepdale (do Preston North End FC). A verba arrecadada com a bilheteria foi revertida para o Hospital Militar Moor Park (responsável por tratar os combatentes sobreviventes). O excelente público presente mudaria o cenário local:
“O sucesso desse evento pioneiro, aliado à necessidade de levantar cada vez mais recursos para suprir o sofrimento das famílias destroçadas pela guerra, fez com que os jogos de futebol de mulheres se multiplicassem pelo país, tornando-se efetivamente um esporte de espetáculo. Segundo Newsham (1997), o caráter de novidade teria sido o propulsor do interesse pelo futebol de mulheres, porém a habilidade e dedicação das atletas tornou-se o principal chamariz para o público, sobrepujando inclusive o ideal filantrópico que justificava tais eventos em sua sociogênese” (REIS; SOUZA JÚNIOR, 2015. p. 05).
Dick Kerr’s Ladies – Bob Thomas-Popperfoto-Getty Images
Entusiasmados com a boa resposta do público e a vitória, os diretores da Dick, Kerr and Co. Ltd. passaram a apoiar as funcionárias do time, incentivar sessões de treinamento no estádio Deepdale e promover partidas com frequência, onde aproveitavam para convidar adversárias de destaque para trabalhar na empresa e integrar a equipe.
Embora existissem campeonatos dos homens organizados pela Football Association, não existia algo semelhante para as mulheres. Assim, o DKL se limitava às partidas amistosas. Inicialmente, apenas, no Deepdale. No entanto, com o sucesso estrondoso provocado por Lilly Parr (autora de 900 gols ao longo da carreira; única mulher a figurar na inauguração do Hall da Fama do futebol inglês) e cia, o Dick Kerr’s Ladies passou a não só excursionar por toda a Inglaterra, mas também para fora do país. Assim tradicionais estádios, como o Old Trafford (Manchester United), St. James Park (Newcastle), Anfield (Liverpool) e Stamford Bridge (Chelsea), receberam partidas do time, que desde 1917 era a grande sensação de público do futebol na Inglaterra.
Em 26/12/1920, o Dick Kerr’s Ladies rumou à cidade de Liverpool para enfrentar mais uma vez (já haviam jogado em setembro do mesmo ano) o St. Helens Ladies no estádio do Everton, o Goodison Park, em uma partida que entraria para a história do esporte pelo público impressionante: cinquenta e três mil (53.000) pessoas assistiram ao duelo (vencido pelo DKL por 4×0) e outras quatorze mil (14.000) ficaram do lado de fora.
O time fazia tanto sucesso na época que, diante da ausência de uma Seleção Inglesa de futebol de mulheres, acabou sendo escolhido para representar o país em duelos contra o selecionado francês no mesmo ano de 1920.
Mas então veio o ano de 1921 e com ele a interrupção do futebol de mulheres pela Football Association. Incomodada com o sucesso que o Dick Kerr’s Ladies vinha fazendo (vitórias em todos os sessenta e seis jogos disputados naquele ano) com grandes públicos em suas partidas (o que acabaria obrigando a entidade a organizar um campeonato também para mulheres, já que alguns clubes estavam em tratativas para organizar campeonatos regionais), a F.A decidiu proibir, por regulamentação, em outubro daquele ano, dizendo que “o jogo de futebol seria totalmente inadequado para o sexo feminino e não deveria ser encorajado”, ameaçando ainda os clubes a não disponibilizarem seus estádios para partidas, sob pena de desfiliação.
Vale lembrar que, no Brasil, tal pretexto também foi utilizado em 1941 (Decreto-lei nº 3.199) para a mesma decisão (complementada posteriormente, em 1965, com a Deliberação nº 07/65-CND). O argumento de que as funções reprodutivas das mulheres poderiam ser prejudicadas pela prática do esporte foram o suficiente para mantê-lo marginalizado até 1983, quando o CND, após revogar em 1979 a proibição, estabeleceu regras para a prática do futebol de mulheres, reconhecendo-o como esporte e tornando possível a formação de clubes e ligas (recomendo a leitura dos excelentes livros “Mulheres impedidas: a proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo” de Giovana Capucim e Silva e “Evas no gramado: a história do Primavera Atlético Clube, o time de futebol feminino proibido no Governo Vargas” de Auriel de Almeida).
Voltando à Inglaterra, a perseguição ao futebol de mulheres vigorou até 1971, ano em que finalmente a F.A. cancelou a lamentável resolução e “permitiu” que elas jogassem por clubes. O DKL seguiu fazendo amistosos e excursões fora da Inglaterra e já em 1922, ano seguinte ao início da clandestinidade, além das adversárias, teve que driblar também a própria Football Association, que tentou proibir a excursão da equipe à América do Norte (tendo êxito em vetar jogos no Canadá, mas não nos Estados Unidos, após contato com a entidade que regulava o futebol canadense). O time manteve suas atividades até 1965. Ao todo foram 828 partidas, sendo 758 vitórias, 46 empates e 24 derrotas.
Se hoje há um abismo técnico e de infraestrutura entre o futebol de homens e o de mulheres no mundo, o que acaba gerando patrocínios, cobertura midiática e premiações deveras desiguais e desproporcionais (vide o contraditório caso da US Soccer na disparidade de tratamento entre suas Seleções adultas), resta evidente não se tratar de absolutamente nada relacionado às condições físico-biológicas de cada um, mas sim fatores externos, políticos e sociais, determinados por quem comanda o esporte.
Para aqueles do início do texto, que insistem em criticar sem avaliar o panorama completo e o contexto histórico, indago: como exigir o mesmo nível de excelência de uma categoria esportiva onde em dois dos principais países, desde a “invenção” em 1863, as mulheres passaram mais tempo impedidas de jogar do que praticando?
Não se deve jamais desprezar o passado, visando uma melhor compreensão do hoje e, consequentemente, proporcionando um melhor amanhã. Como ficou provado pelas jogadoras do Dick Kerr’s Ladies FC, em época totalmente distante (mas também tão próxima) dos dias atuais, as mulheres sempre jogaram e jogarão futebol e, sim, levando grandes públicos aos estádios. O futebol seguirá sendo praticado por elas, aconteça o que acontecer, basta que não atrapalhem ou sigam criando empecilhos para a não divisão dos holofotes no esporte mais popular do planeta.
Referências
ALMEIDA, Auriel de. Evas no gramado: a história do Primavera Atlético Clube, o time de futebol feminino proibido no Governo Vargas. Rio de Janeiro: Hanoi, 2017.
ALVITO, Marcos. A rainha de chuteiras: um ano de futebol na Inglaterra. Rio de Janeiro: Apicuri, 2014.
CAPUCIM E SILVA, Giovana. Mulheres impedidas: A proibição do futebol feminino na imprensa de São Paulo. Rio de Janeiro: Multifoco, 2017.
KESSLER, Cláudia Samuel. Mais que Barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. Tese (Doutorado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social: Porto Alegre, 2015. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/131770/000980499.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em abril/2019.
REIS, Heloisa Helena Baldy dos; SOUZA JÚNIOR, Osmar Moreira de. Dick Kerr Ladies: uma história de mulheres, futebol, violência simbólica e resistência. Disponível em: http://congressos.cbce.org.br/index.php/conbrace2015/6conice/paper/viewFile/7536/3642. Acesso em abril/2019.
Sites
esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2017/12/28/ha-cem-anos-jogo-de-operarias-atraiu-10-mil-fas-e-fortaleceu-as-mulheres.htm
globoesporte.globo.com/am/futebol/noticia/com-publico-historico-sereias-batem-iranduba-e-abrem-vantagem-nas-semis.ghtml
globoesporte.globo.com/futebol/mundial-feminino/noticia/2015/06/lilly-parr-mulher-de-900-gols-que-abriu-portas-do-futebol-feminino.html
sol.sapo.pt/artigo/573388/inglaterra-por-entre-as-mulheres-
www.espn.com.br/espnw/artigo/_/id/5433105/futebol-feminino-em-10-meses-5-jogos-arrebentam-em-publico-pelo-mundo-relembre
www.srgoool.com.br/Noticia/Futebol-feminino-se-despede-da-Rio-2016-com-media-de-publico-maior-do-que-o-Brasileirao
Copa de 1999 mostrou ao mundo a força e a mídia do futebol feminino
[1] “Ao invés de utilizar o termo futebol feminino, corrente tanto no espaço esportivo quanto acadêmico, proponho o conceito de futebol de mulheres, objetivando, com isso, a desindexação do pensamento normativo de gênero, refém do binômio masculino/feminino. O futebol de mulheres, no Brasil, é um espaço marcado pela expressão de múltiplas perspectivas de gênero, além de se caracterizar por performances corporais improvisadas e criativas, revelando-se um espaço de disputas, mas também de convivialidade, como outros espaços sociais quaisquer. Trata-se, portanto, de afirmar este espaço de relações multifacetadas, deixando de lado o discurso das ausências, da precariedade e da invisibilidade, a partir dos quais este futebol tem sido caracterizado.” in KESSLER, Cláudia Samuel. Mais que Barbies e ogras: uma etnografia do futebol de mulheres no Brasil e nos Estados Unidos. p. 08.