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Os ladrões de felicidade

Por Renato Gueudeville

É bem provável que o futebol brasileiro esteja vivendo o seu maior momento de intensas e profundas transformações. A história nos diz que os avanços mais relevantes no mundo da bola canarinha só aconteceram por forças externas ao seu universo, mais especificamente pela esfera do Estado (Executivo e Legislativo).

Desde Getúlio Vargas que via no futebol um importante instrumento de manobra das massas (no seu governo foi idealizado o Torneio Rio-São Paulo), passados alguns anos pela demissão de João Saldanha, na Copa de 70, por pressão do Presidente Médici e chegando aos tempos atuais com a Lei Zico, Lei Pelé e recentemente a Lei da SAF. Executivo e Legislativo sempre colocaram a mão para influenciar o sistema na tentativa de ordená-lo ou usá-lo ao seu benefício. Ou as duas coisas. Futebol é elemento cultural de forte apelo popular e onde tem povo, tem político querendo a sua parcela.

Há algumas décadas, o cenário do nosso futebol é dominado por personagens à frente dos seus clubes que roubaram dos torcedores de diversas agremiações brasileiras a mais valiosa mercadoria para o jogo: a felicidade.

Anos de gestões irresponsáveis, fraudulentas e incompetentes fizeram com que nossos clubes estejam pagando caro pelas ações de outros períodos. Quantos clubes grandes se tornaram menores em função disso? Quantos clubes venceram no passado colocando a sua existência futura em risco? Quantos se financiaram às custas da falta de pagamentos de tributos, salários, fornecedores? Quantos dirigentes enriqueceram a partir das negociatas nas madrugadas regadas à whisky e canapés?

Claro que durante muito tempo existiram dirigentes de grandes clubes brasileiros no perfil “abnegado”. Quando eram honestos e ricos, drenavam recursos a fundo perdido para o clube conseguir pagar suas contas e ser competitivo. Quando eram pobres e honestos, saíam dos clubes como verdadeiros heróis ou bandidos, o resultado em campo selaria o rótulo. Quando eram desonestos, aí o céu era o limite e o inferno era o destino do clube e de suas torcidas.

Nabi Abi Chedid, Eurico Miranda, Vicente Mateus, Francisco Horta, Márcio Braga, George Helal, Castor de Andrade, Fábio Koff, Emil Pinheiro, Fernando Carvalho, Paulo Maracajá, Alexandre Kalil, Luciano Bivar, Paulo Carneiro, Zezé Perrella e tantos outros que ocuparam espaço na cena dos clubes brasileiros e que podem se enquadrar em um dos status mencionados acima. Alguns muito competentes, outros nem tanto. Alguns honestos, outros nem tanto. Outros com modelo “híbrido” (um pouquinho honesto, um pouquinho desonesto). A classificação fica por conta de cada leitor.

Alguns desses caras não roubaram somente o vil metal… eles roubaram o sonho de muito torcedor que tomou chuva, sol, frio e calor nas arquibancadas dos nossos estádios. Alguns deles inclusive roubaram o futuro da instituição. Mas, acima de tudo, eles tomaram de assalto a chance de ter alegria com os nossos clubes, nos fazendo viver de felicidades efêmeras. São os verdadeiros “ladrões de felicidade”.

O crescimento da indústria e, consequentemente, dos valores movimentados pelos clubes, agentes, jogadores e demais partes interessadas foi acompanhado também pelo aumento de escândalos de corrupção. De manipulações de resultados no futebol italiano à máfia do apito no Brasil. Do Barçagate (operação no clube catalão que resultou na prisão do Presidente Josep Bartomeu) ao Fifagate, passando por CBF e federações. De Cruzeiro à Figueirense e de tantos outros atores presentes nesse show dos horrores de crimes no âmbito da bola. No exterior ou no Brasil, dirigente ruim e picareta sempre esteve à espreita aguardando e criando seus mecanismos de enriquecimento e feudos de poder.

Nesse ambiente que, no Brasil, sempre foi dominado por dirigentes despreparados (muitos deles mal-intencionados e com práticas de gestão temerárias), cercado de amadorismo por parte dos comandantes de nossas associações futebolísticas, eis que começamos a notar um movimento de evolução da efetiva profissionalização do futebol tupiniquim. Claro, aqui nós não aprendemos pelo amor. Aqui é pela dor. Alguns clubes precisaram ir à lona para buscarem o caminho correto da condução dos seus destinos.

Algumas dessas associações não precisaram virar clube-empresa para buscar boas práticas de gestão. Elas já iniciaram o processo de transformação. Porém, se clube-empresa era uma pauta pertencente ao futebol europeu, por aqui começam a surgir diversas frentes que podem resultar em um modelo cada vez mais predominante. A Lei da SAF, ainda que com ainda brechas importantes a serem resolvidas (dívidas tributárias é uma delas), abre um espaço importante para entrada de investidores que podem trazer outros ares de gestão ao negócio.

Um parênteses: tão importante quanto a entrada de investidores estrangeiros no nosso futebol é a regulação destes observando mecanismos de prevenção e combate à lavagem de dinheiro. Trocar dirigente picareta tupiniquim por picareta gringo é trocar CEP por ZIP CODE. Não transformará o nosso futebol e os problemas podem ser até piores.

Se falar sobre Liga era uma obra de ficção científica, aos poucos (cheio de percalços, vaidades, demonstrações de poder, pouco senso de coletividade e outras coisas mais), as discussões partem para cenários mais factíveis de uma união futura.

Pensar em Fair Play Financeiro, Governança e Compliance no futebol?? Parabéns! Você estaria em Nárnia, sem saber o porquê de ser este um dos vários universos existentes com o mundo em que habitamos.

Somente com o uso cada vez maior do compliance e da governança corporativa no futebol, aliado à consolidação de Estatutos modernos e sólidos e de órgãos de fiscalização e punição, nós poderemos diminuir o avanço desses casos de irregularidade, deixar patrocinadores e parceiros comerciais mais seguros de não ter sua marca atrelada a gestões fraudulentas e de valorizar a integridade do produto futebol brasileiro.

Como exemplo, o Coritiba implantou o programa “Conduta Coxa-Branca”, em 2016, e somente no primeiro ano de funcionamento obteve cerca de 120 denúncias que preveniram a perda de R$ 50 milhões. Imagine se essa fosse uma ferramenta das principais agremiações, quanto poderíamos encurralar a parte podre do sistema?

Iniciativas interessantes surgem como o “Ranking de Transparência”, do jornalista do ge – Rodrigo Capelo – em que mede o grau de confiabilidade e de transparência dos números financeiros dos clubes brasileiros, conforme figura abaixo.

O Bahia e o Grêmio, que se configuram como o 2º e 3º clubes mais transparentes pelo ranking, acabaram de cair para Série B o que demonstra que mesmo clubes bem geridos e transparentes poderão ter insucesso no campo, mas no longo prazo o trabalho compensará. O Cruzeiro, com tantos sucessos dentro de campo nos anos 2000, foi negligente com diversas dessas questões e todos nós sabemos o resultado disso tudo.

Note ainda que o mesmo Coritiba, que lançou há 6 anos um programa de compliance citado anteriormente, não aparece nem entre os 20 (é o 21º) da lista acima. Pois é. Ainda há um caminho enorme para ser percorrido.

De 20 clubes avaliados na Série A, somente o Red Bull Bragantino não havia publicado relatório de auditoria. Dos que publicaram, 7 tiveram ressalvas por parte dos auditores. Ter 60% dos clubes com auditoria sem ressalva, é sim, um grande avanço para o nosso futebol.

É claro que é importante alinhar a expectativa do nosso leitor: diminuir a dominância dos maus dirigentes não é o desaparecimento por completo. Essa é uma raça que está longe de ser extinta e que se desenvolverá sempre onde o sistema permitir brechas. Porém, é inegável que as boas práticas de gestão poderão reduzir substancialmente a incidência desses casos, o que trará confiabilidade e valorização do produto. Existe um caminho grande a ser percorrido, mas também é um fato que essa jornada já começou a ser trilhada.

Os dirigentes são figuras centrais no processo de transformação de um clube de futebol. Formar e trazer bons gestores para as lideranças dos nossos clubes é elevar o sarrafo e criar as condições para que o profissionalismo avance de uma vez por todas nas instituições.

O darwinismo (teoria evolucionista de Charles Darwin) pregava que a seleção natural das espécies ocorria pela necessidade de sobrevivência e adaptação delas em um determinado ambiente. Precisamos criar as condições para que os bons gestores sejam dominantes e, certamente, a prática será repassada para as próximas gerações de dirigentes do futebol brasileiro. A seleção natural precisa ir tirando de cena essa espécie de dirigentes incompetentes e desonestos. É lento e gradual, mas o ganho será permanente.

Vem, Darwin!

Crédito imagem: Paulo Sérgio/LancePress!

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Renato Gueudeville é administrador de empresas com MBA em Finanças Corporativas, conselheiro consultivo, gestor com conhecimento em reestruturação empresarial e atuação pelas principais instituições financeiras do país. Acredita que no mundo da bola, fora da gestão não há salvação. É sócio do Futebol S/A.

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