Seguimos com a quarta e penúltima parte da repercussão histórica do caso Bosman. Com as exigências feitas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) a partir da sentença Bosman, a FIFA precisou se movimentar no sentido de prever mecanismos substitutivos ao passe para assegurar remuneração aos clubes formadores e garantir estabilidade contratual do sistema associativo que governa, mas, ao mesmo tempo, preservar a liberdade laboral dos atletas.
Já mencionamos nas colunas anteriores que a aposta da entidade maior do futebol ficou centrada na vinculação contratual, já que, após a extinção do passe, o atleta se torna um agente livre (free agent) após o término do contrato.
A partir do início dos anos 2000, a FIFA passa a dispor, em seu RSTP, no art. 21 (e anexo n. 05)[1], com base na noção de fraternidade, que, toda vez que um atleta profissional for objeto de transferência internacional antes do término do contrato, uma contribuição de solidariedade de 5% do montante total deverá ser paga pelo novo clube às equipes pelas quais o jogador atuou entre os 12 e 23 anos (clubes formadores), sendo que o Tribunal da FIFA entende que não pode ser acordado que tal contribuição seja distribuída pelo próprio atleta, ao menos formalmente. Tal mecanismo incide até a aposentadoria do jogador a cada transferência, mesmo que por empréstimo, no caso de troca de jogadores ou via acionamento da cláusula buy-out (pagamento da multa rescisória). Caso o jogador tenha atuado por vários clubes até os 23 anos, o regulamento prevê critérios de rateio entre os clubes formadores caso o jogador lá tenha atuado por, pelo menos, uma temporada completa. Caso o(s) clube(s) formador(es) não mais exista, os valores devem ser repassados às Federações Nacionais para reinvestimento na formação de novos atletas.
O mecanismo de solidariedade faz com que a negociação de direitos econômicos de atletas permaneça a representar importante fonte de renda dos clubes, mesmo após a extinção do passe. A FIFA, ao instituí-lo, estava ciente de que a economia do futebol não poderia prescindir dessa força motriz. Ficou preservado o espaço de manutenção dos investimentos nas categorias de base como um grande negócio, especialmente no contexto dos países exportadores de talentos, como o Brasil.
Após uma adaptação realizada pela FIFA em seus regulamentos em 2020, o mecanismo de solidariedade foi ampliado como o escopo de estender o direito ao recebimento do percentual da transação à hipótese de uma transferência doméstica ocorrida após uma transação internacional, o que estimula e compensa ainda mais o investimento na formação de jovens valores. A título ilustrativo, o Flamengo recebeu uma bela quantia quando o atleta Paquetá foi transferido do Lyon (França) para o West Ham, da Inglaterra, na qualidade de clube formador. No último ano, ainda antes das acusações envolvendo as apostas online, o atleta quase se transferiu o Manchester City. Caso a transação tivesse sido concretizada, a transferência nacional no âmbito da Federação Inglesa (FA) geraria novamente o acionamento do mecanismo.
Vale ressaltar ainda que, desde 2010, a FIFA obriga a utilização do seu sistema internacional de transferências online, o TMS (Transfer Matching System)[2], que estava em operação desde 2008, como forma de assegurar transparência e segurança ao mercado de transferências, inclusive para efeito de processamento do mecanismo de solidariedade. O sistema auxilia no controle das transações, evita eventual calote e contribui indiretamente na missão da FIFA de coibir o tráfico de menores via futebol, que é um desafio internacional muito sério. A FIFA também disponibiliza uma versão do sistema para transferências domésticas que podem ser utilizados por clubes e federações, o DTMS (Domestic Transfer Matching System).
Junto ao TMS, a entidade colocou em funcionamento uma Câmara de Compensação (Clearing House – FCH) ao final de 2022[3], que atua como instituição de pagamento na França, servindo como intermediária de transações financeiras relativas aos mecanismos de solidariedade e de indenização por treinamento, operando como elemento central no sistema de transferências da FIFA. Sua missão é centralizar, processar e automatizar os pagamentos (payment in), garantindo repasse aos clubes formadores (payment out) e promover transparência nas transações, evitando fraudes após uma análise de conformidade, o que, no fundo, é fruto do esforço da entidade de garantir a almejada estabilidade contratual e financeira do sistema como um todo. Segundo a FIFA, o próximo passo será ampliar o escopo da Câmara para que também os pagamentos de transferências de um clube para outro e aos agentes sejam lá processados, evitando-se pagamentos para “lugares estranhos”.
A Lei Geral do Esporte (Lei 14.597/2023) também implementa uma espécie de mecanismo de solidariedade nacional, previsto para as transações domésticas, com a mesma finalidade de compensar os clubes formadores. O art. 102 do referido diploma prevê que, sempre que ocorrer uma transferência uma transferência nacional de atleta profissional, 6% (percentual que na Lei Pelé era de 5%) do montante pago pela agremiação contratante serão distribuídos proporcionalmente entre as equipes que contribuíram para sua formação entre os 12 e 19 anos. Cabe à equipe cedente reter o respectivo valor e distribuí-lo às equipes formadoras no prazo de 30 dias após a efetiva transferência. O fato gerador é a transferência nacional onerosa, sem qualquer limite de idade. Por fim, caso a desvinculação do atleta ocorra unilateralmente por parte dele via pagamento de cláusula penal, caberá à equipe que recebeu a multa repassar o percentual de 6% aos formadores. A fiscalização fica à cargo da respectiva federação responsável pelo esporte no plano nacional, como a CBF no caso do futebol.
Na próxima coluna, seguiremos para tratar do mecanismo de indenização por treinamento (training compensation), fechando, assim, a série de estudos envolvendo o caso Bosman. Até lá!
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[1] https://digitalhub.fifa.com/m/6a0797ec77cbc02c/original/Regulations-on-the-Status-and-Transfer-of-Players-February-2024-edition.pdf. Acesso em 13/11/2024.
[2]https://www.fifatms.com/. Acesso em 13/11/2024.
[3]https://fifaclearinghouse.org/. Acesso em 13/11/2024.