Search
Close this search box.

Os perigos da onerosidade excessiva nos contratos de licenciamento de materiais esportivos

Por André Sica* e Beatriz Chevis**, do CSMV Advogados***  

No contexto das negociações esportivas, é cada vez mais frequente que jogadores estabeleçam vínculos jurídicos pessoais que ultrapassam as linhas dos gramados, a exemplo dos famosos contratos de fornecimento de materiais esportivos.

O próprio mercado estimula esse tipo de negociação, na medida em que os atletas têm liberdade para escolher alguns de seus itens de trabalho, tais quais as chuteiras e as luvas dos goleiros. Além disso, os contratos frequentemente incluem o provimento de vestimentas, acessórios e calçados casuais – que contribuem para a exposição na mídia mesmo fora dos jogos e treinos.

Trata-se de relação benéfica a ambas as partes. Do ponto de vista do atleta, soma-se a vantagem financeira às regalias do recebimento constante (e não oneroso) de materiais de trabalho de qualidade e de utensílios para a vida privada. Por sua vez, as empresas se beneficiam com a promoção das vendas, com a construção de imagem de onipresença e com o fortalecimento da marca, todos decorrentes da associação do produto com um profissional com carreira de destaque no esporte e detentor de grande base de fãs, que tende a consumir os produtos vinculados aos seus ídolos.

Como não poderia ser diferente, os termos das negociações e os valores investidos variam conforme as partes envolvidas e acrescentam contornos estratégicos ao cenário de fornecimento de materiais esportivos. Dessa forma, a abordagem feita com potenciais talentos ou com figuras de menor relevo é diferente da realizada com os craques cujas carreiras já estão encaminhadas. E é nessa distinção que se encontra a complexidade – e o perigo – do negócio.

Nesse contexto, os contratos milionários com grandes atletas representam porcentagens ínfimas frente ao enorme volume diário de negociações das empresas. Em decorrência da infinidade de demandas, surge a tendência natural de uma massificação dos contratos, com a repetição de minutas padrão e com pouca flexibilidade para adaptações. No entanto, como veremos, ao mesmo tempo em que a mecanização facilita e equaliza, ela também potencializa riscos.

Da análise sucinta de contratos de fornecimento utilizados pelas principais empresas de materiais esportivos, vê-se que estas se valem de seu poderio econômico para impor condições comerciais pautadas no seu próprio e único interesse, condições essas materializadas em cláusulas substancial e formalmente abusivas.

Fala-se em abusividade na medida em que os contratos colecionam obrigações unilaterais e desbalanceadas, sempre em detrimento dos atletas, e se valem da sua legítima expectativa de se vincularem à marca para a exploração como vitrines de luxo para a exibição de produtos.

De forma exemplificativa, com a assinatura de um contrato, o atleta pode se obrigar a aparecer nos meios de comunicação e a comparecer a eventos em outras cidades ou até mesmo a “excursões internacionais”, tudo a exclusivo critério da fornecedora. Também constitui direito da empresa, por sua mera liberalidade, reduzir a remuneração devida ao atleta com base no desempenho do time, na imagem do clube e em outros critérios semelhantes, que fogem ao seu controle.

Nessa mesma linha, percebe-se que o atleta é forçado a declarar repetidamente a sua ciência em relação a todas as condições, incluindo as que constam em língua estrangeira, independentemente de seu grau de instrução e do acompanhamento por um advogado especializado.

Em matéria de rescisão, a abordagem dos contratos continua tão desbalanceada quanto: se o desfazimento é de interesse do atleta, deve comprovadamente preencher diversos requisitos para afastar a multa exorbitante, bem com o direito de preferência não remunerado reservado à fornecedora; ao passo que, se é de vontade da empresa, nem sequer é necessário notificação ou aviso prévio.

Até mesmo a estrutura dos instrumentos contribui para o reconhecimento de seu caráter unilateral, característico dos contratos de adesão, uma vez que todas as condições personalíssimas se resumem ao preenchimento de um formulário inicial, com poucas lacunas objetivas, que se seguem de diversas páginas com cláusulas genéricas e impositivas, como as citadas.

Cumpre destacar que os contratos de adesão consistem em instrumentos com direitos e obrigações integralmente estabelecidos pelos proponentes, sem que os aderentes possam discutir ou modificar o seu conteúdo. Por si só, a adoção desse modelo chama a atenção para a existência de um negócio unilateral e polarizado, no qual uma das partes tende a levar vantagens sobre a outra.

Fala-se, portanto, em um acervo de deveres que onera excessivamente o atleta e, mais do que isso, que cerceia sua liberdade de consentimento. As minutas dos contratos comumente utilizadas demonstram de forma nítida a existência de um elo mais fraco na relação, que é apenas levado a aceitar todas as condições colocadas pelas grandes empresas, sob pena de perda do vínculo e/ou de multas excessivas.

Com base nessa perspectiva, o reconhecimento de uma cláusula como abusiva depende de uma análise global e em concreto da avença, passando pelas partes envolvidas, pelo modo como os termos foram pactuados e pela compreensão do racional envolvido no instrumento, inclusive da proporção entre prestações e contraprestações.

Uma vez identificada a abusividade, passa-se à percepção sobre sua dimensão. Em se tratando de vício encontrado em dispositivos específicos, o tratamento jurídico apresentado pelo Código Civil consiste na declaração de nulidade da(s) cláusula(s), garantida a manutenção do vínculo entre as partes e a validade demais disposições contratuais, nos limites da boa-fé objetiva. Entretanto, caso se reconheça que a abusividade ultrapassa a redação de poucos enunciados e macula a negociação como um tudo, o instrumento inteiro é passível de anulação, com a resolução da relação em perdas e danos.

Conforme já enfrentado na seara consumerista e consolidado em sua jurisprudência, em casos de contestações judiciais de contratos tidos como abusivos, a postura majoritariamente assumida pelos tribunais revela uma equalização das obrigações, por meio da desconstituição de cláusulas abusivas e da aplicação de condições bilaterais. Em outras palavras, fala-se em uma restauração forçosa (e artificial) do equilíbrio econômico entre as partes, partindo do pressuposto de hipossuficiência por parte do aderente.

Considerando os contratos analisados e ressalvadas as particularidades de cada relação jurídica, é visível que as fornecedoras de materiais esportivos hoje optam pela adoção de um modelo de contratação claramente de risco, ante à fácil demonstração de onerosidade excessiva aos atletas e reconhecimento da abusividade, de forma análoga ao já observado nas relações de consumo.

É importante ter em mente que, embora os atletas, em um primeiro momento, aceitem ou não percebam as condições desbalanceadas, em um cenário de fragilidade posterior, essas imposições podem ser questionadas e declaradas parcialmente/integralmente inválidas, comprometendo a relação e gerando perda econômica e de prestígio.

Cabe às fornecedoras ponderar se as vantagens obtidas com a imposição de cláusulas leoninas justificam os riscos assumidos, ou se a adoção de um relacionamento mais equilibrado com os atletas não seria, por si só, o melhor caminho para a longevidade das relações e para maior segurança jurídica dos contratos.

*André Sica 

É sócio de Direito Desportivo do CSMV Advogados. Pós-graduado em Direito Desportivo pela Kings College (Londres) e graduado pela PUC-SP. Trabalhou como associado internacional no escritório Hammonds & Hammonds, em Londres. Leciona Direito Desportivo nos cursos de especialização da CBF Academy, ESA e da Federação Paulista de Futebol. Foi recomendado pela Chambers Latin America (2018-2019), pela Best Lawyers (2018) e pela Leaders League (2018) entre os melhores por sua atuação em Direito Desportivo e Entretenimento.

**Beatriz Chevis

É graduanda em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP) e membro da equipe de Direito Desportivo do CSMV Advogados. Secretária do Superior Tribunal de Justiça Desportiva da Liga Nacional de Futsal. Procuradora no Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Universitária Paulista de Esportes. Coordenadora do Grupo de Estudos de Direito Desportivo da FDUSP.

***CSMV Advogados (Carvalho, Sica, Muszkat, Vidigal e Carneiro Advogados).

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.