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Os senhores absolutos do esporte

Em um tempo em que a seleta entrada de um sujeito para um clube de elite dependia de habilidade, família e cor – as duas últimas mais do que a primeira –, a superioridade esportiva dos clubes formados apenas por brancos parecia demonstrar que havia uma “ordem certa” nas coisas.

O futebol, por exemplo, era melhor quando jogado por branco, e a prova irrefutável era aquele 5 a 3 do Fluminense sobre o Bangu. A equipe de Francisco Carregal, filho de pai português e mãe negra, disputava campeonato com quatro negros e seis operários no elenco, e parecia não se importar (ou se importar menos) com a origem de seus atletas. “Deu no que deu.”

Alguém que olhasse de longe poderia dizer que, sendo rapazes da sociedade, os brancos de boa família levavam vantagem sobre os mulatos porque tinham casa, comida e tantas horas a menos de trabalho. Estudantes do curso de medicina, poderiam assistir às aulas da faculdade pela manhã e chegar descansados pro treino da tarde. Uma série de benesses com as quais o negro ou o operário (que às vezes se confundiam num só) não poderiam contar. Entretanto, não haveria de ser. O fato é que cada um tinha o seu lugar, e não havia melhor prova da superioridade de quem estava lá em cima do que o fato de continuarem lá.

Vez ou outra, um mulato mais habilidoso fugia à “regra” e despontava. Quando o Vasco desrespeitou os manuais e passou a contratar atletas pelo talento, apanhados nas peladas e em clubes menores, a coisa desandou. O resultado foi que, quando o Vasco entrava em campo, “o máximo que o outro time aguentava era um tempo”¹. Enquanto os jogadores do outro time estavam que nem podiam se aguentar de pé, os jogadores do Vasco “pareciam que nem tinham começado a jogar”.

Quando as solas descalças das peladas começaram a ganhar dos clubes em que só branco jogava, colocaram a culpa no português. Não fossem eles, quem é que estaria dando casa, comida, descanso e lugar de treinar pra essa gente que mal sabia assinar o próprio nome? O português, diziam, “tinha alterado a ordem natural das coisas”².

Preocupado, o presidente Epitácio Pessoa, em 1921, mandou publicar que “os senhores absolutos do esporte” não permitiam que negros e mulatos pudessem ser convocados para o Campeonato Sul-Americano, em Buenos Aires. E assim foi. Perdemos dois dos três jogos disputados.

Ao que parece, o então presidente se esquecera de que, dois anos antes, um mulato de olhos verdes fora o responsável pelo primeiro título de projeção internacional do futebol brasileiro. Filho de pai branco e mãe negra, Arthur Friedenreich era um menino de pernas esguias cuja ascendência alemã permitira que, “apesar da cor”, iniciasse carreira no elitíssimo Germânia (atual Pinheiros), na capital paulista.

O curioso que se conta sobre Fried é que alisava os cabelos crespos, e, desde que entrara no Fluminense, era como se a habilidade com a bola e a autorização da sua presença no clube o fizessem menos mulato. Ao invés de empretecer o Fluminense, era o Fluminense que o embranquecia³.

Talvez ele não soubesse, mas a vitória que ele trouxe ao Brasil daquele 1 x 0 contra o Uruguai era tanto menos um título internacional, quanto mais o descortinar de que o futebol era coisa pra todo mundo, pra toda cor. O povo descobriu que, finalmente, o futebol era como tinha que ser.

……….

¹ FILHO, Mário. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad, 2003
² Op. Cit.
³ Dizia Mário Filho: “Um preto no Fluminense não é preto para o Fluminense. É tratado como branco. Pode esquecer-se da cor e dizer como Robson: Eu já fui preto e sei o que é isso”.

 

 

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