O STJD publicou uma importante notícia na semana passada sobre casos de injúria racial, demonstrando a luta do Tribunal no combate ao preconceito. De acordo com o site do STJD, em 2022 “19 casos foram denunciados e, após comprovados, 13 deles foram punidos pelos auditores em julgamentos realizados de janeiro a dezembro. Somadas as penas, foram aplicadas punições de R$ 335 mil em multa e o total de 5 partidas e 370 dias de suspensão aos clubes e infratores relacionados com as práticas”.
Os casos de injúria racial são julgados com base no artigo 243-G. O artigo não pune somente a injúria racial; a punição prevista neste artigo é para qualquer “ato discriminatório desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.
De fato, o artigo 243-G É uma grande arma que a Justiça Desportiva tem para usar no combate à discriminação no futebol.
Ocorre que há algumas questões importantes sobre as quais seria muito bem-vinda uma reflexão um pouco mais profunda dos tribunais desportivos quando o assunto é a aplicação do 243-G.
Para tanto, é necessário que façamos uma breve análise dos dispositivos legais e regulamentares sobre o tema. Começamos, sempre, com a Constituição Federal, que em seu artigo 5º, inciso XLI prevê que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Passamos à Lei Pelé (Lei Geral sobre o Desporto – 9.615/98), que, quando se refere aos princípios fundamentais do desporto, prevê que “o desporto, como direito individual, tem como base os princípios da segurança, propiciado ao praticante de qualquer modalidade esportiva, quanto a sua integridade física, mental ou sensorial”.
No mesmo sentido, já nos voltando à internacional privada, o Código Disciplinar da FIFA, em seu artigo 13, prevê que “Qualquer pessoa que ofenda a dignidade ou integridade de um país, uma pessoa ou grupo de pessoas através de desprezo, discriminação ou depreciação palavras ou ações (por qualquer meio) em razão da raça, pele, origem étnica, nacional ou social, sexo, deficiência, orientação sexual, idioma, religião, opinião política, riqueza, nascimento ou qualquer outro status ou qualquer outro motivo, será sancionado com uma suspensão de pelo menos dez partidas ou um período específico, ou qualquer outra medida disciplinar apropriada”. Além disso, a circular nº 1682 de 25 de julho de 2019 da FIFA determina a adoção de procedimentos por todas as Federações Membros e respectivos árbitros no combate a ocorrência de comportamentos discriminatórios durante as partidas de futebol.
Finalmente, o foco da coluna: a Justiça Desportiva e o artigo 243-G; eis o artigo na íntegra:
Art. 243-G. Praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência:
PENA: suspensão de cinco a dez partidas, se praticada por atleta, mesmo se suplente, treinador, médico ou membro da comissão técnica, e suspensão pelo prazo de cento e vinte a trezentos e sessenta dias, se praticada por qualquer outra pessoa natural submetida a este Código, além de multa, de R$ 100,00 a R$ 100.000,00.
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1º Caso a infração prevista neste artigo seja praticada simultaneamente por considerável número de pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva, esta também será punida com a perda do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente, e, na reincidência, com a perda do dobro do número de pontos atribuídos a uma vitória no regulamento da competição, independentemente do resultado da partida, prova ou equivalente; caso não haja atribuição de pontos pelo regulamento da competição, a entidade de prática desportiva será excluída da competição, torneio ou equivalente.
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2º A pena de multa prevista neste artigo poderá ser aplicada à entidade de prática desportiva cuja torcida praticar os atos discriminatórios nele tipificados, e os torcedores identificados ficarão proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de setecentos e vinte dias.
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3º Quando a infração for considerada de extrema gravidade, o órgão judicante poderá aplicar as penas dos incisos V, VII e XI do art.
Bem, com a íntegra do artigo em mente, passemos à discussão sobre as questões em relação à sua aplicação.
- A primeira delas é sobre a homofobia. O caput do artigo, ou seja, a “cabeça”, a parte superior do artigo, é o trecho entre aspas que eu utilizei agora a pouco quando falei da infração que o artigo pune.
Note que no caput do artigo (na “cabeça” do artigo; na sua parte superior) não há nada sobre discriminação em razão da orientação sexual. É que o artigo 243-G foi incluído no Código pela Resolução CNE nº 29 no ano de 2009.
10 anos antes de o Supremo Tribunal Federal (quando do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 26 e do Mandado de Injunção 4733) ter reconhecido a mora do Congresso Nacional para legislar sobre atos atentatórios a direitos fundamentais dos integrantes da comunidade LGTB+ e enquadado a homofobia e a transfobia como tipo penal definido na Lei do Racismo – Lei 7.716/1989.
10 anos antes da mencionada circular nº 1682 de 25 de julho de 2019 da FIFA (que determinou a adoção de procedimentos por todas as Federações Membros e respectivos árbitros no combate a ocorrência de comportamentos discriminatórios durante as partidas de futebol).
10 anos antes de a Procuradoria do STJD, como parte do trabalho preventivo contra casos de homofobia no futebol brasileiro, emitir uma recomendação para que clubes e Federações atuassem de forma preventiva com campanhas educativas e que os árbitros relatassem qualquer tipo de manifestação preconceituosa nas súmulas e documentos oficiais.
É por isso que as infrações que envolvem a prática de atos discriminatórios em razão da orientação sexual, mesmo que não mencione expressamente, são infrações ao artigo 243-G.
Ocorre que em 2019 o que o STF fez foi criar um crime por analogia.
A decisão da Suprema Corte é louvável no mérito, mas peca na forma. Trata-se de clara afronta ao princípio legalidade penal, previsto no artigo 5º, inciso XXXIX: “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal.” Quem define tipo penal, portanto, é a lei.
Pode parecer um detalhe, algo que só advogado preocupa; mas não é. O princípio da legalidade é a base de uma sociedade civilizada.
Além disso, para que a norma penal seja aplicada, a conduta do sujeito deve incidir exatamente no que está descrito na lei. Como a criminalização da homofobia ocorreu por meio de decisão do judiciário e não por meio de uma norma debatida e editada pelo legislativo, não há definição legal exata do que seria o ato homofóbico punível.
Esta incerteza também é refletida na aplicação do artigo 243-G para punir atos homofóbicos. Ora, qual seria a definição sobre exatamente qual conduta é considerada homofóbica para que seja punível por afronta ao artigo 243-G, à luz da proteção à integridade da competição, bem jurídico tutelado pela Justiça Desportiva?
Ainda que não tenhamos a definição estritamente legal sobre a conduta punível à luz da analogia à Lei do Racismo, seria benéfico que os Tribunais de Justiça Desportiva, após reflexão e diálogo com a comunidade desportiva, estabelecessem critérios e condutas definidas para a aplicação do artigo 243-G. A medida traria maior relevância, eficácia e justiça no combate à homofobia.
2. O segundo ponto que merece uma reflexão maior do tribunal em relação ao artigo 243-G é sobre quem seriam as “pessoas vinculadas a uma mesma entidade de prática desportiva” a que se refere o § 1º do artigo 243-G.
Essa definição é importante porque o § 1º do artigo 243-G traz uma punição pesada ao clube cujas “pessoas vinculadas” praticam a infração: trata-se da perda de pontos ou da exclusão da competição caso ao campeonato em disputa não se atribua pontos.
O torcedor é considerado “pessoa vinculada” ao clube para fins de incidência do § 1º do artigo 243-G? Ou estaria o legislador se referindo somente à dirigentes, membros da comissão técnica, etc.? Se o torcedor for considerado “pessoa vinculada”, cânticos de torcida podem ser entendidos como discriminatórios e o clube pode perder pontos ou ser excluído da competição.
Não me parece ser este o caminho correto para a interpretação do artigo.
Observe que o § 2º do artigo 243-G tem previsão expressa de punição à torcida do clube que pratica a infração tipificada no caput. Assim, ainda que seja possível argumentar sobre a inclusão do torcedor no grupo de “pessoas vinculadas ao clube”, também é possível entender que o § 2º é norma específica quando trata do torcedor, afastando a aplicação da norma geral do § 1º. No exemplo, portanto, não caberia a aplicação da pena de perda de pontos ou a exclusão, mas somente da pena de multa.
Ademais, a aplicação do § 2º do artigo 243-G para atos discriminatórios praticados por torcedores tem prevalecido nos julgamentos do STJD em casos semelhantes. Destaco uma decisão proferida em 27/09/2022 pela 3ª Comissão Disciplinar do STJD no bojo do Processo N° 3199/2022, no qual o clube denunciado nas iras do artigo 243-G por atos praticados pela torcida recebeu a punição de multa no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais)[1].
De qualquer forma, parece haver uma insegurança jurídico-desportiva considerável sobre a qual o tribunal poderia se debruçar, debater e esclarecer.
3. Há outro aspecto no § 2º do artigo 243-G sobre o qual os tribunais poderiam refletir com uma profundidade maior: a aplicação da pena ali prevista ao torcedor identificado.
Consta nesse parágrafo que o torcedor que praticou atos discriminatórios, se identificado, ficará “proibidos de ingressar na respectiva praça esportiva pelo prazo mínimo de 720 dias”.
É uma pena pesada, mas de difícil aplicação, já que o controle de ingresso pelos clubes não é tão simples.
Além disso torcedor não é jurisdicionado da Justiça Desportiva; ou seja, ao torcedor não se aplicariam diretamente as decisões tomadas pelos tribunais desportivos já que a ele não se aplica o Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD).
Mas na incidência da pena prevista no § 2º do artigo 243-G está-se diante de um cenário no qual o torcedor pode ser punido num Tribunal regido por um Código ao qual ele não está submetido, por meio de um processo ao qual ele não tem direito ao contraditório e à ampla defesa.
A aplicação da pena seria flagrantemente inconstitucional.
É inegável o papel da Justiça Desportiva no combate à discriminação e o artigo 243-G é ferramenta fundamental nessa luta. Para que seja efetivo, precisa ser aperfeiçoado.
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[1] https://www.stjd.org.br/noticias/crb-punido-por-discriminacao-e-arremesso-de-objetos