É sabido que, em junho do ano passado, após anos de amplos debates, tramitação no Congresso Nacional e muita expectativa no meio esportivo, foi sancionada a Lei n. 14.597/2023, que a se tornaria a nova “Lei Geral do Esporte” (LGE) no Brasil. A legislação incorporou a tentativa de modernizar e atualizar o regramento legal do esporte às exigências dos dias atuais. Além do mais, corporificou o escopo de unificação e organização do sistema em um grande e único arcabouço legal, pondo fim à grande colcha de retalhos que se tornou o sistema legal desportivo brasileiro, especialmente diante das inúmeras e sucessivas alterações na Lei Pelé (Lei n. 9.615/98), as quais fizeram com que a mesma perdesse organicidade e sistematicidade. Foram revogadas, inicialmente, as Leis n. 8.650/93 (relações de trabalho do treinador profissional), n. 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor), n. 10.891/2004 (Bolsa-atleta), n. 12.867/2013 (regulamentação da profissão de árbitro de futebol), n. Lei 11.438/06 (Lei de Incentivo do Esporte) e a própria Lei Pelé.
A coluna vertebral do sistema desportivo idealizado pelo legislador, claramente de caráter liberal, gravitou em torno da concretização, em maior grau, da autonomia constitucional das entidades desportivas (art. 217, CF), no sentido do autogoverno, autoadministração e autonormatização das mesmas, o que lhes garantiria atuação livre (ou mínima) de intervenção estatal. Seus principais dispositivos, inegavelmente, refletiram tal orientação. O fato de a LGE conter escassa regulamentação a despeito da Justiça Desportiva (o regramento então existente da Lei Pelé seria revogado) é bastante ilustrativo, pois as entidades teriam autonomia para implementar suas estruturas próprias para apreciar questões envolvendo competições e disciplina, com a possibilidade, inclusive, de adoção da arbitragem privada para tal.
Ocorre que a euforia com a aprovação do novo diploma recebeu um verdadeiro banho de água fria após a constatação de que a sanção presidencial veio acompanhada de uma quantidade enorme de vetos. No total, foram 397 dispositivos legais vetados, o que representa cerca de 40% do texto. Independentemente do mérito dos vetos presidenciais, a questão é que o excesso de vetos descaracterizou a lei em seus alicerces ou aspectos fundantes. Com os vetos, algumas das leis que seriam revogadas foram repristinadas, especialmente a Lei Pelé e a Lei de Incentivo ao Esporte, de modo que a própria LGE resultou mutilada e a sensação de insegurança jurídica e o desafio de compatibilização foram inevitáveis.
Nas razões dos vetos e em manifestações da então Ministra do Esporte Ana Moser foram apontadas diversas justificativas para os vetos, tais como simples divergências de conteúdo, insegurança jurídica, vícios de iniciativa e a opção no sentido de que temas como a autonomia e a gestão das entidades desportivas deveriam ser tratadas por decreto e assuntos como justiça desportiva, antidopagem e questões trabalhistas seriam objeto de futuras propostas legislativas com encaminhamento futuro ao Congresso Nacional.
De imediato, a expectativa da comunidade esportiva passou a gravitar em torno da apreciação e da possibilidade de derrubada dos vetos presidenciais por parte do Congresso Nacional. Na última semana, enfim, o Parlamento começou a apreciar parcialmente, após articulação com o Governo Federal, alguns dos vetos presidenciais à LGE, que vinham trancando a pauta legislativa. Tudo indica que, aos poucos, o sistema idealizado pelos especialistas e pelo legislador será reconstruído, já que a derrubada de vários dos vetos vai se consolidando.
Na última sessão legislativa destinada ao tema, no dia 09 de maio, três pontos centrais foram objeto de deliberação. Em primeiro lugar, foi derrubado o veto ao § 1º, do art. 160, restabelecendo-se o direito dos atletas profissionais ao recebimento, como parcela indenizatória de natureza civil, de 5% (cinco por cento) da receita proveniente da exploração de direitos de difusão de imagens de eventos (direito de arena). Em segundo plano, foi reativada a previsão da criação do Fundo Nacional do Esporte (FUNDESPORTE), que era a espinha dorsal do sistema idealizado pelo legislador no sentido do custeio e universalização das políticas esportivas em todo o território nacional, cujo veto foi embasado na ausência de fontes de custeio, embora as mesmas constassem do art.48 (recursos do Tesouro Nacional, 5% das verbas destinadas ao SUS, exploração de loterias, etc). Por derradeiro, também caiu o veto ao art. 27, parágrafo único, que admite o uso da arbitragem como meio para resolução de conflitos de natureza esportiva, no que se refere à disciplina e à prática esportiva, bem como para questões patrimoniais, inclusive de trabalho e emprego.
A nosso ver, o veto à possibilidade de utilização da arbitragem em matéria desportiva não se sustenta por diversos motivos, os quais certamente levaram à sua rejeição. Diferentemente do que consta nas razões do veto[1], tal previsão não contraria o interesse público nem ofende a garantia constitucional do acesso à justiça. Caso contrário, a própria arbitragem comum seria inconstitucional, o que já foi rechaçado pelo STF. Traçando-se um paralelo com o sistema comum, mesmo com a Constituição Federal assegurando a inafastabilidade do controle jurisdicional, nada impede que as partes, de comum acordo, nas causas patrimoniais, renunciem à jurisdição estatal submetendo seus conflitos à arbitragem privada por via contratual. Na seara esportiva, embora a CF estabeleça a competência da Justiça Desportiva (que também é privada, ressalte-se, representando ela própria uma exceção ao direito de ação) para apreciar questões envolvendo disciplina e competições, nada deveria impedir que as Federações e clubes, por ato de vontade, insiram em seus regulamentos a previsão de submissão de questões disciplinares a órgãos de natureza arbitral, ampliando-se a chamada arbitrabilidade objetiva desportiva. No mais, a própria resistência histórica à possibilidade de submissão de questões trabalhistas à arbitragem privada vem arrefecendo ao longo do tempo, especialmente após a reforma trabalhista de 2017.
Já apontamos em estudo anterior os problemas estruturais da Justiça Desportiva no Brasil[2], o que certamente poderá motivar uma maior utilização da arbitragem em matéria disciplinar a partir da referida previsão. Isto, por sua vez, representará a “morte” da Justiça Desportiva? Ainda é cedo para afirmar, mas provavelmente não. A cadeia esportiva é muito extensa para imaginar que todas as entidades partirão para o caminho arbitral.
Outra questão polêmica que foi objeto de veto e ainda dependerá de análise do Congresso Nacional é aquela envolvendo a revogação do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD) e a possibilidade de as entidades criarem seus próprios códigos disciplinares (adequados à realidade de cada modalidade) e estruturas próprias de Justiça Desportiva (arts. 189 e 215), o que poderia afetar, inclusive, o perfil da atual Justiça Desportiva Antidopagem, levando ao extremo a questão da autonomia das referidas entidades. Com o veto a tal possibilidade, o dispositivo da LGE que revogava a Lei Pelé também teve de ser vetado (art. 217, II), evitando-se um vácuo legislativo no ponto que toca o regramento da Justiça Desportiva. A referida discussão será objeto de futura coluna (parte II) assim que o tema for objeto de análise no Congresso Nacional, assim como a repercussão envolvendo a apreciação dos demais vetos. Até lá!
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[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Msg/Vep/VEP-0273-23.htm#:~:text=Raz%C3%B5es%20dos%20vetos,jur%C3%ADdico%20nacional%20em%20posi%C3%A7%C3%A3o%20inferior. Acesso em 15/05/2024.
[2] RAMOS, Carlos Henrique. Direito processual desportivo: o uso da arbitragem para a resolução de conflitos no futebol. Curitiba: CRV, 2020.