“Passar a boiada” é uma expressão utilizada em nosso país para simbolizar a modificação de regras e procedimentos ou extinção de direitos de forma apressada e em detrimento daquilo que é considerado justo e legítimo numa sociedade plural e democrática.
No Brasil, é comum tentar passar a boiada em momentos de distração da população. Não raro, normas são editadas quando a sociedade está voltada para algum acontecimento específico como a virada do ano, a véspera do carnaval, a copa do mundo, ou inebriada em situações de comoção nacional, como é o caso da pandemia.
Invariavelmente utiliza-se de propostas alardeadas para regular um tema específico, embutindo-se matérias totalmente diferentes e lesivas aos interesses dos mais fragilizados.
Veja-se, por exemplo, o que ocorreu em recente projeto de lei, apresentado sob o pretexto de socorrer os clubes provisoriamente, até o fim do estado de calamidade pública, decretado em decorrência do coronavírus.
Na referida proposta, aproveitou-se para tentar reduzir definitivamente o valor da cláusula compromissória devida aos atletas. Tocamos o nosso berrante, alertando essa tentativa espúria de passar a boiada, no artigo Dois Jabutis. Houve forte resistência da classe e o Congresso voltou atrás.
O mesmo pode-se dizer do projeto de lei do “clube-empresa”, que fez com que a sociedade voltasse a sua atenção para a disciplina do regime empresarial a ser implementado no futebol. Entretanto, o referido PL inexplicavelmente regula temas diferentes, dentre os quais o de retirar mais direitos dos atletas, sem que isso guarde qualquer relação com o foco da discussão, conforme expusemos nos artigos Brincando de faz de conta e Era dos Extremos.
O estratagema se repete com a MP nº 984, que alterou a titularidade do direito de arena, em que poucos atentaram para outra alteração contundente: o de passar a boiada sobre os direitos dos atletas, retirando dos seus sindicatos a função de recebimento e repasse dos valores devidos aos jogadores pela utilização de sua imagem nas partidas.
Se tem um dinheiro que os jogadores recebiam com certeza era o percentual do direito de arena. Como sabido, esta era uma “verba carimbada” que ia diretamente para os sindicatos, onde faziam o cálculo e o repasse devido para cada jogador.
Referido procedimento vem funcionando perfeitamente bem ao longo de quase vinte anos de vigência da nova redação da Lei Pelé, que deu aos sindicatos essa função. Aliás, basta olhar para trás e ver que, antes dessa alteração, os clubes jamais repassavam o valor devido aos atletas.
Por outro lado, essa intermediação dos sindicatos é importante, porque o jogador fica protegido do desconfortável processo de cobrança dos valores devidos junto ao seu empregador, enquanto lhe presta os seus serviços.
Se essa previsão da MP vingar, o clube fica com a faca e o queijo na mão, na medida em que, por se tratar de verba de natureza civil, ele não fica sujeito a perder o jogador por inadimplemento, como acontece se não pagar o salário, na forma do art. 31 da Lei nº 9615/98.
Se ainda assim são costumeiros os atrasos salariais, imagine o que farão com o direito de arena… Nessa hipótese, só restará ao atleta recorrer à justiça cível, numa ação ordinária de cobrança, que se andar rápido, não deverá durar menos de dez anos…
A receita federal também será lesada, porque no momento do pagamento é feito o recolhimento do imposto de renda na fonte, o que só evidencia o caráter paternalístico da legislação esportiva brasileira, editada sempre fazendo caridade com o chapéu alheio, do tamanho de um chapéu de boiadeiro.
O pior de tudo é que, na prática, esse direito dos jogadores certamente irá desaparecer, uma vez que os clubes deverão, ao celebrarem os contratos de trabalho, exigir que os atletas abram mão dessa verba, pois como se trata de uma remuneração de cunho civilista, ela é renunciável por parte de seu titular.
Como se diz na pecuária, o boi é considerado um dos animais mais importantes do planeta, porque dele é possível se aproveitar quase tudo, com a exceção do berro.
Aqui porém, talvez até o berro se aproveite, pois está na hora dos atletas berrarem contra mais essa aberração e impedir que a boiada passe destruindo tudo o que levou décadas para ser plantado.
O governo diz que a medida é para proteger os jogadores, pois diz na sua exposição de motivos que a M.P. visa evitar “eventuais falhas na distribuição do percentual legal por parte dos sindicatos que, apesar de receberem o repasse dos Clubes, não presta contas da distribuição aos atletas”.
E quem garante que os clubes irão distribuir o dinheiro corretamente? Se a diretoria sequer presta contas para os seus associados, alguém acha que eles prestarão para os seus empregados? E se não o fizerem terão os atletas que cobrar individualmente essa transparência dos seus empregadores? Alguém acredita que eles possuem alguma condição de fazer isso?
Por essas e outras, dá para notar que essa justificativa é completamente desarrazoada, podendo ser denominada de várias formas:
Papo furado, desculpa esfarrapada ou …
Conversa para boi dormir.
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