A prática desportiva tem um componente lúdico que se traduziu em verdadeiro obstáculo para o reconhecimento da atividade do atleta como profissão.
O desporto faz parte do cotidiano do ser humano há milênios. O que antes era encarado como um jogo, sendo este acessível e praticado tanto por crianças quanto por animais, passou a ter regras pré-estabelecidas e a ser encarado com seriedade. O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de limites pré-estabelecidos de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas rigorosamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo e acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente na “vida quotidiana” (HUIZINGA, 2014. p. 33).
Ensina Manuel Sérgio que o desporto é uma ciência, a necessidade de uma filosofia que analise as condições de validade da conduta motora de características simultaneamente lúdicas e agonísticas (SÉRGIO, 1982. p. 24).
Uma das propriedades básicas da prática desportiva é a normatividade, isto é, uma atividade sujeita a normas jurídicas e morais pré-estabelecidas, as quais pretendem canalizar a energia libidinal agressiva.
As regras do desporto (e até mesmo as do direito desportivo) surgiram a partir de uma atividade elaborada pela própria sociedade, desenvolvida de forma espontânea e independente da atividade técnica dos corpos legislativos oficiais, sendo que o direito que surge desta atividade espontânea da sociedade é definido por Oliveira Viana como o direito-costume, o direito do povo-massa, desconhecido e ignorado propositalmente pelas elites, nada obstante, em alguns momentos, sejam compelidos a reconhece-los e a legaliza-los (VIANA, 1999. p. 44).
A legislação desportiva brasileira nasceu com a Comissão Nacional de Desportos, criada através do Decreto–lei n.º 1.056, de 19 de janeiro de 1939, sendo que a referida Comissão elaborou o projeto do Código Nacional de Desportos que, no preâmbulo, dispunha que a lei tinha por fim organizar a instituição desportiva no Brasil, mas foi somente no ano de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial, que teve origem a primeira legislação desportiva brasileira, com a edição do Decreto-lei nº 3.199/41, que estabeleceu as bases de organização dos desportos em todo o território nacional (VEIGA : 2020. p. 37).
Desde a década de 1940 que se reivindicava uma legislação que tratasse dos atletas profissionais e assegurassem patamares mínimos de direitos, mas foi somente com a edição da Lei n.º 6.354/1976 que foi estabelecida a relação de trabalho entre o atleta profissional e as entidades de prática desportiva.
Conforme se extrai da lição de João Antero de Carvalho, um membro titular da pasta do Trabalho afirmou que o Governo tinha a intenção de apresentar uma regulamentação das atividades do jogador de futebol já na década de 1950. Além disso, diversos interessados, principalmente dirigentes de clubes e de entidades desportivas ainda não detinham a real compreensão da necessidade dessa regulamentação (CARVALHO, 1951. p. 257).
Os seus argumentos eram contundentes, pois afirmava que o Título III da Consolidação das Leis do Trabalho tratava de normas especiais da tutela de trabalho, com expressa disposição acerca da duração e condições do trabalho de diversas categorias, como, por exemplo, dos bancários, empregados nos serviços de telefonia, de telegrafia submarina e subfluvial, de radiotelegrafia, músicos, estiva, capatazia, jornalistas, professores, químicos, dentre outros. Em seguida a CLT dispunha sobre normas de proteção ao trabalho da mulher e do menor, para, em seguida, nas disposições especiais do Título IV, cogitar, de relance, dos trabalhadores rurais, empregados em consultórios e escritórios de profissionais liberais, artistas e trabalhadores de empresas teatrais e circenses.
A crítica residia no fato de que inúmeras atividades despertaram a atenção do legislador ao ponto de se cunhar normas especiais de proteção ao trabalho. Contudo, não havia normas que dispusessem acerca das peculiaridades dos atletas profissionais de futebol, nada obstante o contínuo crescimento desta prática desportiva e o aumento do interesse nas competições.
O autor destacava o exemplo bem-sucedido da Colômbia, país no qual sociedades anônimas se organizavam para explorar o futebol. No Brasil, os clubes eram associações recreativas, sem fins lucrativos.
A regulamentação, segundo seu ponto de vista, passava também pelo direito coletivo como forma de prevenção, atenuação ou solução de conflitos.
Um outro ponto que merecia destaque e atenção era a falta de um equilíbrio legal, com o reconhecimento de vantagens e obrigações para o atleta, o que gerava dúvidas nos juízes dos Tribunais Trabalhistas, tendo em vista a escassez de normas.
Todos estes argumentos demonstravam a urgente necessidade de uma regulamentação da atividade, pois não poderia o jogador de futebol ficar à margem de legislações protetivas do trabalho, enquanto inúmeras outras categorias dispunham de regramento próprio viabilizando um maior equilíbrio entre empregado e empregador.
É pitoresca a passagem da obra de Antero de Carvalho quando discorre acerca do processo movido por Algisto Lorenzato, também conhecido pelo apelido de “Batatais”, jogador nascido em 1910 que atuava na posição de goleiro e reconhecido por seu comportamento exemplar dentro de campo. Era de origem humilde e teve seu primeiro contato com o futebol no time da empresa onde trabalhava, o Frigorífico Anglo. Em 1935 passou a defender o Fluminense e foi cinco vezes campeão carioca pelo Clube das Laranjeiras, tendo sido goleiro da Seleção Brasileira em duas partidas da Copa do Mundo de 1938 (CARVALHO, 1951. p. 265).
O goleiro provocou a Justiça do Trabalho, pois julgava ser detentor de direitos e o seu processo chegou até ao Supremo Tribunal Federal que se pautou no fato de não ser aplicável ao atleta o reconhecimento da estabilidade decenal em virtude das peculiaridades que envolvem a profissão, como, por exemplo, o direito a que o atleta tem ao pagamento de gratificações (como luvas e bicho) e o passe, fatos que o diferenciam de um trabalhador comum. Além disso, um outro fato interessante foi colocado em jogo: a impossibilidade de se impor a um clube de futebol permanência de “elementos imprestáveis para a finalidade do contrato, máxime se atentarmos para que os atletas se afastam das atividades desportivas em idade muito verde, via de regra quando, em outras profissões, principia o trabalhador a adquirir maior perfeição no seu mister”.
Com efeito, o Direito do Trabalho ordinário não se coaduna com a realidade do desporto, razão pela qual a prática social naturalmente criou um ordenamento próprio, capaz de abranger um regime diferenciado para o trabalho desportivo.
Esse histórico demonstra as peculiaridades do desporto e acabam refletindo no contrato especial de trabalho desportivo (CETD), assim denominado pela própria Lei Pelé (Lei n. 9.615/1998). Nota-se, portanto, que em razão das especificidades da prática desportiva o legislador se viu compelido a formular normas distintas daquelas aplicadas para o trabalhador ordinário.
A atividade do atleta profissional é regida pela Lei Geral do Desporto e não pela CLT, sendo que esta somente será aplicada de forma subsidiária e apenas quando não houver incompatibilidade com os princípios do desporto, conforme previsão constante no art. 28 § 4º da Lei Pelé.
Ao citar Arturo Majada, o jurista brasileiro que é considerado o “pai do Direito Desportivo” no Brasil, João Lyra Filho, afirma que “o contrato desportivo, não podendo ser enquadrado em nenhum dos tipos admitidos pelo legislador, deverá ser fixado em seus elementos legais, em função de um exame concreto das singulares consequências jurídicas pretendidas pelos contratantes.” (LYRA FILHO, 1952. p. 307)
O CETD tem características próprias e deverá ser celebrado, obrigatoriamente, de maneira formal mediante a elaboração de um contrato de trabalho, com período de duração mínimo de 3 meses e máximo de 5 anos[1]. Após o registro do referido contrato na respectiva entidade de administração do desporto terá início o vínculo desportivo.
O contrato de trabalho desportivo é especial em razão da necessidade de se compatibilizar o aspecto laboral com o aspecto desportivo.
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[1] Em razão da pandemia provocada pela Covid-19, a Lei nº 14.117/2021 inseriu o Art. 30-A na Lei Pelé para estabelecer que “As entidades desportivas profissionais poderão celebrar contratos de trabalho com atleta profissional por prazo determinado de, no mínimo, 30 (trinta) dias, durante o ano de 2020 ou enquanto perdurar calamidade pública nacional reconhecida pelo Congresso Nacional e decorrente de pandemia de saúde pública de importância internacional.
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Referências Bibliográficas:
CARVALHO, J. Antero. Direito do Trabalho Interpretado. Comentários à margem da Jurisprudência. 1ª edição, Rio de Janeiro: Editorial Sul Americana S/A, 1951.
HUIZINGA. Johan. Homo Ludens. 8ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva, 2014.
LYRA FILHO, João. Introdução ao Direito Desportivo. 1ª edição. Irmãos Pongetti Editores: Rio de Janeiro, 1952.
SÉRGIO, Manuel. A Prática e a Educação Física. 2ª edição. Compendium Editora: Lisboa, 1982.
VEIGA, Mauricio de Figueiredo Corrêa da. Manual de Direito do Trabalho Desportivo – 3ª edição. São Paulo: LTr, 2020.
VIANA, Francisco José de Oliveira. Instituições Políticas Brasileiras. Brasília: Conselho Editorial do Senado Federal, 1999.