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Pelo direito de sonhar

Por Renato Gueudeville

A Lei das SAF’s trouxe uma nova perspectiva de modelo empresarial voltado ao futebol em nosso país.

Durante muitos anos, os clubes foram tocados de forma amadora, irresponsável e, porque não falar, criminosa. O resultado disso foi uma grande leva das principais agremiações brasileiras com suas estruturas e finanças em frangalhos. Como escrevi em um artigo anterior chamado Os ladrões de felicidade, a péssima gestão de grande parte dos dirigentes do futebol brasileiro levou os clubes à lona e todos sabiam que essa conta chegaria um dia. E chegou.

Clubes como Flamengo e Palmeiras fizeram corretamente seu dever de casa ainda que durante alguns anos estivessem muito aquém das suas capacidades de performarem esportivamente. Grêmio e Bahia também passaram por grandes reestruturações e têm bons modelos de gestão, mas fracassaram recentemente na principal vocação de um clube: jogar futebol e ter sucesso em campo.

Um verdadeiro duelo do sonho com a realidade é travado todos os dias nas nossas vidas. Em alguns, o imaginário prevalece construindo uma ponte ao que desenhamos de melhor. Em outros, os fatos ditam as ações de hoje para não contar no futuro com o que não temos no presente. E aqui não há errado nessa história.

De um lado da Arena, o controle racional das expectativas. É a “Sra. Realidade” que nos mostra sempre que há pouco espaço para devaneios.

O Bahia fechou o ano de 2021 com cerca de R$ 200 milhões em receitas anuais. Clubes como Flamengo e Palmeiras começam a chegar em patamares de bilhão em receitas. Depois deles, temos Corinthians, Atlético-MG, São Paulo, Grêmio, Internacional, Santos, Fluminense, Botafogo e Athlético. Se incluirmos o Vasco e o Cruzeiro nesse grupo, até porque é óbvio que eles têm tamanho para tal, temos 13 clubes na frente do Bahia em receitas.

Ainda que consideremos que alguns desses mencionados vivem momentos desafiadores na sua estrutura de endividamento, sabemos que alguns deles têm enorme capacidade de geração de receita, com torcidas de abrangência nacionais e mercados consumidores maiores do que a Bahia.

Além disso, ainda temos Ceará e Fortaleza com baixíssimo endividamento, torcidas fortemente engajadas e capazes de atraírem bons investidores para o caminho de uma SAF.

O que quero dizer com isso? A Sra. Realidade avisa que não será no curto prazo que os resultados chegarão. Existem clubes na frente em diversos aspectos e não se fecha um gap desses da noite para o dia.

Um outro aspecto importante é que na concretização das SAF’s existe uma trilha de integração entre as partes na formação da nova empresa que envolvem desenhos de processos, macroestruturas, recursos (financeiros, humanos, tecnológicos e outros) e uma curva de aprendizado de como esse novo modelo se dará em ambiente brasileiro. Isso leva tempo para ser assimilado e tudo leva a crer que o campo é onde o resultado mais pode demorar a ser refletido. Portanto, é importante o alinhamento de expectativas dos CEO’s da SAF’s com as suas torcidas. A comunicação precisa ser clara, direta e realista para que o jogo não vire contra eles num espaço curto de tempo.

Note que o americano John Textor tem encontrado dificuldades em calibrar seu discurso com a empolgação e engajamento da torcida do Botafogo. Até para os frios americanos fica difícil de resistir aos encantamentos da paixão desvairada que as torcidas brasileiras têm com seus clubes. E até quem parece estar devidamente preparado para isso acaba como uma criança que se lambuza com um doce.

Do outro lado da Arena, o portal aberto do imaginário. É o “Sr. Sonho” que vem nos trazer um leque de possibilidades em que nem o céu é limite.

Quem nunca sonhou em ter um emprego melhor? Um carro? Uma família? Filhos? Todo mundo sonha.

Nas organizações, o sonho é o que chamamos de Visão. É ela que determina para onde a empresa quer chegar. Os sonhos de qualquer dirigente minimamente preparado devem estar alinhados à visão do negócio. E a partir disso tento trazer qual a direção o investidor da SAF do Bahia enxerga.

O CFG é hoje o maior MCO (Multi-Club Ownership – conglomerado de clubes) em atividade no mundo. O grupo tem como acionista principal o fundo soberano de Abu Dhabi que tem na sua estratégia ser um negócio de entretenimento global através do futebol. Soft power, conexões políticas e, acima de tudo, diversificação de portfólio de investimentos para fronteiras além do Golfo são algumas das motivações dos Emirados Árabes. Não podemos esquecer que essa parte do globo concentra a maior bacia de petróleo do mundo e é zona de tensão há algumas décadas. Portanto, expandir negócios para longe dessa região é pulverizar risco e buscar ampliar a rentabilidade sobre o capital.

Os outros 2 acionistas do grupo são o CMC (China Media Capital) e o Silver Lake. O primeiro é um grande private equity chinês com foco em mídia e entretenimento. Entrou no CFG em 2015 comprando 13% por US$ 400 milhões. O segundo é o maior fundo de investimentos em empresas de tecnologia do mundo e que possui participações em empresas como o Airbnb, Twitter, Alibaba, Dell, entre outros. Ingressou no CFG em 2019 adquirindo 10% por US$ 500 milhões. Não precisamos fazer muita conta para concluir que o CFG passou a ter um valuation estimado, de 2015 para 2019, de US$ 3 bilhões para US$ 5 bilhões.

Ter um player como o Silver Lake como acionista mostra o quanto o grupo é percebido como destino de tecnologia em um mundo cada vez mais “phygital” (termo usado para expressar a integração do mundo físico – physical – e o digital).

Ter clubes espalhados em todos os continentes mostra o quanto é importante e faz parte do DNA do negócio adquirir, formar e gerenciar talentos que podem servir as demais empresas do conglomerado (leia-se, clubes do grupo). Falo de talento de dentro do campo, os mais expostos na vitrine do futebol, mas me refiro também para aqueles de fora do campo. O grupo hoje possui diversos profissionais com formações em algumas das melhores escolas de negócios do mundo. O seu CEO – Ferran Soriano – foi o grande estrategista da virada do Barcelona elevando o patamar econômico do clube catalão. Profissionais tão qualificados que a concorrência começou a levar alguns deles. Don Dransfield era Diretor de Estratégia do CFG e saiu há poucos meses para ser o CEO da 777 Partners, investidor do Vasco. Tom Glick, que foi Diretor Comercial e Operacional do CFG, acaba de sair para o Chelsea.

E tudo isso precisa se traduzir em valorização dos ativos. Abaixo, o quadro já coloca o Manchester City como uma das quatro marcas de futebol mais valiosas do mundo e chegando perto do seu rival da cidade.

Agora, voltando a falar do Sr. Sonho, vamos refletir: será que o que levou aos dirigentes atuais do Bahia a abordar o CFG (City Football Group) não foi um sonho (visão) de ter o maior grupo de futebol do mundo aqui no clube e buscar o salto para um outro patamar? Se o lado racional prevalecesse, será que esse passo teria sido dado? Por informações veiculadas pelo próprio Presidente Guilherme Bellintani, os planos iniciais do grupo dono do Manchester City era se associar a um clube menor e construir um projeto com menos holofote e pressões, ou seja, menos arriscado.

Vamos além. Será que os donos do CFG, ao mudarem sua estratégia e partirem para um clube do tamanho do Bahia, não tiveram a visão (sonho) de construir as bases de um protagonismo na América do Sul de forma mais acelerada? Alguém tem dúvida que o grupo analisou história, engajamento da torcida, potencial de crescimento, captação de talentos no solo mais fértil do mundo, além de ter uma estruturação de uma liga prestes a ser consolidada com todas as condições de estar entre as 5 maiores do mundo?

Os sonhos unem até aqueles participantes mais distantes, diferentes e improváveis.

E o torcedor, como alinhar as suas expectativas?

Nesse momento é fundamental a conscientização da mídia especializada para o grande público. Até poucos anos atrás, ninguém falava em receitas, dívidas, balanços patrimoniais, governança e transparência. São temas que ainda estão em processo de absorção de conceitos e que precisam ser constantemente trabalhados por quem tem acesso a microfones em rádios, canais de Tv ou de Youtube. É preciso massificar a discussão para nivelarmos o conhecimento das informações.

Pode dar errado? Claro que pode. Tudo na vida pode dar errado. Uma guerra pode explodir no Golfo, envolver diversos países e o Emirados Árabes passar a ter retaliações e precisar se desfazer de ativos. Quem apostaria que Roman Abramovich precisaria vender o Chelsea a partir de um conflito entre Rússia e Ucrânia? Pois é. Com pouco mais de 2 meses de conflito, o russo precisou vender o clube inglês a um consórcio de investidores americanos.

Pode dar errado nas escolhas dos executivos que tocarão o projeto, na estratégia de financiamento do modelo de negócio, na distância entre o planejado e o executado. São tantas variáveis nesse contexto que não dá para ser assertivo quanto ao sucesso.

E ainda que todas as variáveis planejadas estejam sob controle e dentro do previsto, se a bola insistir em não entrar, aí exigirá ainda mais habilidade da Direção Executiva em contornar as pressões da torcida e o grito desesperado dos profetas de plantão.

Quando o clube passa a fazer parte de grupos globais, suas forças e fraquezas, oportunidades e ameaças também passam a ser globais. É bônus e ônus, duas faces de uma moeda. A conjuntura não é somente a local, a moeda também passa a ser o do país sede, as diferenças culturais entre diferentes executivos de países ficam explícitas. São desafios presentes nas organizações globais que trazem um leque de oportunidades e outras dificuldades.

Por tudo exposto nas linhas anteriores é até aceitável que a torcida do Bahia tenha um alto nível de expectativas. Um clube que foi dominado quase 16 anos por um clã familiar e que levou sua torcida às ruas, em 2013, para pedir pela democracia, para ter direito a voto na escolha das suas lideranças e poder de formar o seu Conselho Deliberativo. Ela que ajudou a transformar o clube que hoje tem um dos Estatutos mais modernos do país e com altíssimo nível de transparência, legado construído a partir da democratização e que só evoluiu a cada ano.

O sonho e a realidade são o casal que toda pessoa quer juntar. Que nossos dirigentes possam sonhar, mas com objetivos, metas e caminhos definidos para levar o nosso futebol ao real patamar que ele tem. O que eles não têm direito é de vender falsas expectativas às suas torcidas. De promessas não cumpridas já bastam as políticas.

E que você, torcedor de algum clube brasileiro, nunca perca a capacidade de sonhar. Se sonharmos juntos, já será o começo da realidade.

Crédito imagem: Bahiaço

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Renato Gueudeville é administrador de empresas com MBA em Finanças Corporativas, conselheiro consultivo, gestor com conhecimento em reestruturação empresarial e atuação pelas principais instituições financeiras do país. Acredita que no mundo da bola, fora da gestão não há salvação. É sócio do Futebol S/A.

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