A mão inglesa é um caminho, uma direção e um lado do condutor totalmente diferente do restante do mundo. Aqui no Brasil e na maior parte do mundo, os motoristas dirigem pela direita. Por sua vez, o volante dos carros ingleses está colocado à direita e a direção é pela esquerda. Por incrível que pareça há uma explicação histórica, com o escopo de manter a tradição.
Com efeito, a história da mão inglesa se iniciou ainda na Idade Média, quando viajantes e cavaleiros andavam no lado esquerdo da estrada para usar a espada com mais facilidade em caso de ataques repentinos, uma vez que a maioria das pessoas era destra e manter a mão esquerda facilitava sacar as espadas para se defender, montar a cavalo ou andar ao lado. Assim, decidiu-se cavalgar pela esquerda para evitar a colisão das armas.
Essa prática foi formalizada por volta dos anos 1.300, em um édito do Papa Bonifácio. Ao reforçar que “todos os caminhos levam a Roma”, ele convidou os peregrinos a ficarem do lado esquerdo da estrada, reforçando o hábito já difundido entre os viajantes. Dessa forma, com o surgimento das primeiras carruagens, o costume de conduzir à esquerda foi preservado no Reino Unido, o que foi mantido mesmo com a chegada dos carros.
Decerto, a manutenção da mão inglesa representava a perpetuidade da tradição, em uma fase de domínio e predominância dos ingleses no mundo. Atualmente, no esporte mais popular do mundo, onde os ingleses são os criadores, o caminho para manter a tradição, primazia econômica e esportiva vem de uma outra forma, através da inovação.
Nesse sentido, faz-se necessário retornar aos anos 90 para explicar como o pioneirismo dos ingleses foi fundamental para a criação da principal competição nacional do planeta. A Premier League foi inovadora na venda centralizada, na internacionalização e principalmente na divisão igualitária dos recursos oriundos da negociação dos direitos de transmissão.
A iniciativa partiu do meio privado, com os próprios clubes, que dissolveram a antiga Football League e fundaram a atual entidade organizadora. Conscientes do poder de uma negociação conjunta e equilibrada, dividem os recursos oriundos da venda dos direitos audiovisuais de modo mais justo: 50% iguais para todos os clubes da primeira divisão, 25% de acordo com a posição na tabela e 25% conforme número de partidas transmitidas, o que gera o maior equilíbrio na divisão entre as principais ligas do mundo.
Além dos resultados exitosos dentro de campo, que rompeu a barreira do seu território com títulos e domínio continentais, com maior equilíbrio e, consequentemente, qualidade do espetáculo, o campeonato inglês passou a ser referência mundial também fora das quatro linhas. Presentemente, a liderança em receitas em direitos de transmissão nacionais e internacionais pertence à Premier League. A propósito, a arrecadação dos direitos internacionais supera a dos direitos domésticos, sendo televisionada em mais de 190 países.
O crescimento contínuo da liga inglesa veio acompanhada do aumento do interesse de investidores estrangeiros em adquirir ações dos clubes locais, tendo em vista a alta rentabilidade do negócio. No final do ano de 2021, 80% dos clubes contava com capital estrangeiro, sendo 70% de maneira majoritária[1].
Some-se a isso o fato de que os investidores externos passaram a injetar dinheiro em contratações, em estruturas e em folhas salarias dos clubes, o que colaborou para a evolução do futebol. Contudo, o cenário teve que ser adaptado a partir dos anos 2010 e tende a sofrer novas alterações nos próximos anos.
Isso porque, em 2010, foi implementado o conceito e as regras de fair play financeiro da UEFA, que tinham como principais objetivos: i) introduzir mais disciplina e racionalidade nas finanças dos clubes, ii) encorajar os clubes a competir apenas com valores das suas receitas, iii) com as finanças saneadas, possibilitar investimentos no futebol de base e em sua estrutura, garantindo a viabilidade a longo prazo do futebol europeu, e iv) assegurar que as equipes pudessem resolver os seus problemas financeiros, satisfazendo os seus credores.
Em 2016, totalizando 5 anos quando do início da fiscalização, a UEFA estimou que as perdas foram reduzidas em aproximadamente 80 por cento entre as equipes espalhadas por toda o continente. Saíram de 1,7 bilhões de euros para 286 milhões, o que demonstrava, por si só, a eficácia de medida.
No entanto, algumas Ligas adotaram mecanismos de fair play ainda mais restritos. A Liga Espanhola criou além do controle a posteriori, realizado pela maioria das Ligas/Federações e pela própria UEFA, o controle econômico a priori. Em outras palavras, antes mesmo da temporada começar, os clubes sabem o quanto poderão gastar em contratações, com comissões a agentes, em renovações e em salários de atletas e funcionários, da base e do profissional, por exemplo.
Além disso, é valido mencionar que os clubes não podem exceder o valor 70 por cento das receitas com gastos do futebol, de uma maneira geral, o que abrange, por exemplo, contratação, comissionamento e remunerações do elenco. No ano passado, a UEFA aprovou um novo Regulamento de Sustentabilidade Financeira para dispor sobre o controle econômico dos clubes.
Nessa normativa, foram impostas sanções mais severas ao descumprimento das regras, como também a determinação que o patrimônio líquido dos clubes deve ser positivo em 31 de dezembro da temporada anterior, ou então, ter melhorado 10% em relação à mesma data do ano anterior. Por fim, uma das mais importante foi equiparar, de maneira gradual, ao que já vinha ocorrendo na Espanha.
Nesse sentido, pela primeira vez no âmbito europeu, os clubes passarão a estar sujeitos ao controle de custos com o plantel. Esta regra limita os gastos com o futebol em até 70 por cento das receitas do clube – a implementação paulatina colocará os valores em 90 por cento para a temporada de 2023/24, 80 por cento para 2024/25 e 70 por cento a partir de 2025/26.
Contudo, somente a adoção do controle econômico não tem o condão de acabar, por si só, com o desequilíbrio econômico e esportivo entre as equipes. A diferença na distribuição dos recursos obtido na negociação dos direitos de transmissão continuará sendo um obstáculo grande para a equidade competitiva. A combinação desses dois elementos talvez seja o segredo da Premier League.
Pensando nisso, com a iminência do novo formato da Champions League a partir da temporada 2024/25, que definiu um novo critério para a distribuição das vagas adicionais da competição, que passará a ter 36 equipes em sua fase de grupos, e não mais 32. Ademais, ficou decidido que cada equipe disputará oito partidas na fase inicial, no lugar das atuais seis.
Com a mudanças dos critérios, há grandes chances de aumentar o número de vagas aos clubes ingleses, podendo alcançar um quarto da liga em participantes. Além disso, com o incremento da quantidade de partidas, por conseguinte, aumenta-se o valor dos direitos de transmissão e a divisão entre os clubes, podendo a chegar a 33% a mais em relação ao valor recebido nos dias de hoje.
Atualmente, em alguns países, as verbas oriundas Champions League já são responsáveis pela geração de um desequilíbrio financeiro preocupante, o que levou os holandeses, por exemplo, a acordarem que parte do valor recebido pelo clube(s) classificado(s) seria destinado à liga e repartido com os demais participantes do campeonato.
Outrossim, não podemos olvidar do novo modelo de Mundial de Clubes da FIFA[2], com 32 clubes a partir de 2025, que já possui, até o momento, presença confirmada de dois clubes ingleses (Chelsea e Manchester City), o que trará, ao menos, 30 milhões de euros a mais aos cofres dos participantes.[3]
Pensando nisso, os clubes ingleses discutem uma nova regra de controle econômico, aliada com aquelas adotadas em âmbito interno e o europeu, para mitigar os efeitos do aumento de receita das equipes disputantes da Champions League e do Mundial nos próximos anos[4], preservando-se, assim, o equilíbrio competitivo.
Nesse contexto, a ideia é limitar o valor do gasto com a remuneração do elenco a 4 vezes a quantia recebida de direitos de transmissão do último colocado da edição anterior. A título exemplificativo, o último colocado da temporada anterior foi o Norwich, que recebeu o valor de 102,5 milhões de libras, isso significa que o teto para remuneração do plantel seria de 410 milhões de libras.
Sem embargo, ainda não se tem ideia das consequências do descumprimento dessa medida, se seria aplicada uma multa, futuramente distribuída entre os demais participantes, como ocorre, por exemplo, na NBA ou se seriam adotadas outras providências, como sanções esportivas.
O teto salarial é uma prática comum nos esportes americanos, não somente o quanto uma franquia pode gastar com elenco, como também quanto pode gastar com um jogador em remuneração. Para a temporada que vem, no basquete, estima-se que o limite de salário seja de 134 milhões de dólares. Atualmente este valor chega a 123,65 milhões. Já a tax level (multa por descumprimento) deve atingir os US$ 162 milhões de dólares, superando os atuais 150,27 milhões.
Ocorre que, todavia, muitas equipes com poder aquisitivo alto simplesmente pagavam a multa, ignorando a regra e investimento maior do que era permitido, gerando um desequilíbrio na competição. Dessa forma, em um novo Acordo Coletivo nesse ano, a NBA somou outras medidas ao já conhecido tax level.
A NBA está restringindo a capacidade dos times que gastam mais, de continuar aumentando os gastos com salários e impostos de luxo, mantendo mecanismos para adicionar talentos ao elenco. Desse modo, passa a implementar um segundo teto salarial – 17,5 milhões de dólares acima do tax level– e essas equipes não terão mais acesso ao mid-level exception (exceção para jogadores de nível médio) na free agency, quando estão livres no mercado. Nesses casos, as equipes poderiam oferecer apenas o salário mínimo, que varia de acordo com o tempo de experiência do atleta na liga.[5]
O esporte americano é exemplo para todos em termos de competitividade e equilíbrio esportivo, um modelo de negócios, de gestão de negócios e do desporto totalmente diferente do restante dos mundos. No entanto, as boas práticas são seguidas pelos demais. Nesse sentido, cumpre destacar que o presidente da UEFA[6], Aleksander Ceferin, pretende apresentar uma nova regra de teto salarial, limitando o valor da remuneração dos jogadores.
Ciente da americanização dos clubes europeus, com a crescente chegada de investidores estadunidenses, e, portanto, da mentalidade de se fazer negócios, o mandatário afirmou que um dos objetivos é implementar essa limitação, pois os orçamentos estão crescendo muito, então o balanço competitivo passa a ser um problema, com potencial para depreciar o produto, já que serão sempre os mesmos clubes a ganharem.
Entretanto, a questão não parece ser simples, em que pese a boa vontade de diversos players do mercado, tudo deveria ser feito em acordo coletivo e, mesmo assim, poderia ser analisada, à luz da legislação europeia, sobre um possível abuso de posição dominante no mercado, por transgressão às normas de livre circulação de pessoas e capitais e de livre concorrência.
Conforme o exposto, o debate iniciado na Liga Inglesa vem, novamente, na mão da inovação e no caminho do equilíbrio competitivo, única direção para que o produto seja atrativo ao público e aos patrocinadores/investidores. A Premier League continua dando sinais de que ainda quer estar no topo do mundo nos próximos anos. Podemos esperar, nesse contexto, novos desdobramentos também em âmbito europeu. As boas práticas independem de continente.
Crédito imagem: getty images/premier league
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[1] Premier League: líder del negocio a través del capital extranjero (eleconomista.com.mx) – última consulta: 14.06.2023
[2] Fifa anuncia novo Mundial de Clubes com 32 times a partir de 2025 | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 14.06.2023
[3] Premier, un tetto agli ingaggi per difendersi dalla nuova Champions (calcioefinanza.it) – última consulta: 14.06.2023
[4] Premier League clubs could be forced to rip up transfer plans due to wage caps in extraordinary rule change | The Sun – última consulta: 14.06.2023
[5] NBA e sindicato de jogadores chegam a novo acordo coletivo; veja o que muda – ESPN – última consulta: 14.06.2023
[6] Teto salarial no futebol: entenda sugestão do presidente da UEFA, suas razões e possíveis consequências | futebol internacional | ge (globo.com) – última consulta: 14.06.2023