Mais um projeto de lei muito importante para o esporte está na Câmara dos Deputados. E, de novo, tem sido pouco analisado e discutido por todos os personagens do movimento esportivo brasileiro. E isso pode custar caro… ao atleta.
Na quinta-feira, o deputado federal Arthur Maia (DEM-BA) apresentou o projeto na Câmara dos Deputados. Ele é um socorro aos clubes que passam por dificuldades em função da crise provocada pelo novo coronavírus. Até aí, importante. Mas é também fundamental entender sob que condições os clubes terão benefícios fiscais, previdenciários e trabalhistas. E também analisar por que o atleta terá que pagar uma parte significativa dessa conta.
O projeto 2125/2020 tem como objeto central o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro, o Profut. Pelo projeto, os clubes teriam congelados os pagamentos das parcelas do programa por 12 meses. E, mais, ele também prevê que, durante o período de calamidade pública provocada pelo novo coronavírus, aprovada no Congresso em 20 de março, o dinheiro arrecadado com a loteria Timemania seja repassado diretamente aos clubes. Hoje, a receita é repassada diretamente para a Receita Federal, que abate o valor da dívida dos clubes com a União.
Na justificativa, o deputado escreve que “considerando-se a suspensão do pagamento das parcelas do Profut proposta no art. 1º, torna-se medida importante reverter as receitas oriundas do concurso de prognóstico específico (Timemania) para o caixa dos clubes e não mais para os credores dos débitos federais – Receita Federal, INSS e PGFN.”.
Mas uma leitura de todos os 10 artigos traz outras questões fundamentais, como a perda de direitos dos trabalhadores do futebol.
O que prevê o PL:
– O artigo 4 do PL estabelece que nos próximos 180 dias, o clube não precisa recolher o Fundo de Garantia do atleta. E, vai além, determina que o atleta não poderá pedir rescisão do contrato de trabalho, conforme o estabelecido pelo artigo 31 da Lei Pelé em caso de inadimplemento.
– Já o artigo 6 do PL também modifica a cláusula compensatória, a multa que o clube precisa pagar ao atleta em caso de demissão, também estabelecida pela lei do esporte, a Lei Pelé.
– A Lei determina que o mínimo seria o pagamento dos salários restantes até o final do contrato. O Projeto reduz esse valor para metade do que o jogador iria receber até o final do contrato e, no artigo 7, ainda permitir que seja pago de forma parcelada.
– O PL também prevê a inclusão do artigo 30-A, da Lei nº 9.615, de 1998, em caráter transitório, possibilitando a celebração de contrato de trabalho com atletas por período mínimo de 1(mês).
Hoje, a legislação brasileira, no art 30 da Lei Pelé, determina que o Contrato Especial de Trabalho Desportivo tem prazo mínimo de três meses.
A realidade do futebol.
Me parece evidente que nesse momento de crise, todos terão que ceder. Mas vou repetir aqui: numa situação assim quem pode mais, cede mais. Quem pode menos, cede no limite do suportável.
E aqui é importante abrir um parêntese antes de avançar nessa história. Esqueça Neymar, Gabigol e parceria. O futebol real é diferente desse que a gente está acostumado a mostrar, e a consumir.
O jogador de futebol no Brasil tem o mesmo perfil da maioria dos trabalhadores. Ele trabalha muito, ganha pouco e enfrenta dificuldades diariamente. A média de salário de quem vive da bola é muito parecida com a do trabalhador brasileiro: 82% deles ganham um salário mínimo; 13%, entre R$ 1.000 e R$ 5.000; e apenas 5%, mais de R$ 5.000 por mês (levantamento de 2019 da Pluri Consultoria).
Agora, voltemos ao PL. Eu conversei com quatro especialistas que também analisaram o projeto.
“Os recolhimentos fundiários estão a amparar o jogador em caso de desemprego, além de outras hipóteses legalmente previstas, não sendo razoável lhe retirar esse direito. Sobre as contribuições previdenciárias, é preciso, ao menos, determinar que o INSS reconheça a condição de contribuinte do atleta profissional, para que o pagamento posterior não impeça o gozo dos benefícios oferecidos, caso sejam necessários”, lembrou o advogado especialista em direito esportivo Filipe Souza.
O advogado Theotônio Chermont, também especializado em direito esportivo, faz um alerta sempre importante: “A suspensão do recolhimento do FGTS vai premiar os maus pagadores que, mesmo em condições normais, já eram sonegadores. Os recolhimentos do FGTS não podem ser suspensos nesse período, pois a lei que rege suas regras – Lei n. 8036/09 – em seu art. 20, XVI, permite a liberação desses recursos durante estado de calamidade. Os Tribunais vem inclusive liberando os valores para utilização por parte dos empregados. Ora, como alguns poderão ter a liberação se os clubes ficarem desobrigados de efetuarem os recolhimentos?”.
Além disso, a proposta tem um outro agravante. Ela permite que se altere os contratos que estão em vigor, o que me parece inconstitucional.
Filipe Souza vai nessa linha e diz que “a proposta torna ainda mais precária a situação dos jogadores, reduzindo a sua proteção contra a despedida imotivada ou justa causa do empregador.”
Outra questão que salta aos olhos, em uma análise do documento. Não há contraprestação para os clubes. Não existe sanção para o caso de inadimplemento dos pagamentos devidos pós-suspensão.
“Não temos dúvida que muitos clubes ficarão inadimplentes, e a nova proposta vai reduzir o valor das indenizações. No conjunto da obra, serão protegidos os maus pagadores e prejudicados os atletas. Entendo que esse ônus não pode ser transferido ao empregado. E se o PL quer equiparar o atleta às demais categorias, deverá observar que os riscos da atividade econômica e os prejuízos são de exclusiva responsabilidade do empregador, conforme dispõe o artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho’, lembra Theotônio.
Na justificativa anexada ao PL, o deputado escreve que o projeto tem “o fito de igualar o atleta de futebol profissional às demais categorias regidas pela Consolidação das Leis do Trabalho – CLT”.
Para a advogada trabalhista Luciane Adam, “conforme previsão do artigo 2º do projeto de Lei, há intenção de proteger os empregados hipossuficientes com salários de até R$ 12.202,12)
(duas vezes o limite máximo dia benefícios do Regime de Previdência social), os quais devem ter garantida sua remuneração pelos clubes”.
Conversei também com Domingos Zainagui, advogado trabalhista: “Apesar de minha posição já conhecida de proteção ao atleta, neste momento eu entendo que é uma flexibilização para ajudar os trabalhadores, até porque pela CLT, nos contratos por prazo determinado, quando rescindidos, a indenização é pela metade dos salários restantes. Sobre o FGTS, até para o trabalhador comum isso ocorreu. Agora, o parcelamento da multa deveria ser por um certo período, ou seja, uma regra transitória e não eterna. Até poderia ser se fosse o salário integral. A redução do período mínimo para um mês de contrato é para atender casuisticamente os campeonatos do Rio e São Paulo. Mas concordo, pois é transitório”.
Nessa discussão não se pode esquecer de algo fundamental: debate.
Claro que o momento é excepcional, o que exige de todos novos caminhos e soluções. E toda discussão e iniciativa para enfrentar esses dias é importante.
Mas a crise não pode jamais ser pretexto para alimentar a velha cultura da inadimplência, e irresponsabilidade na gestão esportiva. Se ganha um benefício, é preciso assumir responsabilidades, compromissos. Isso vale para mim, para você, para todos em qualquer empréstimo bancário. Isso precisa valer também para o esporte.
O futebol está mudando. O esporte também. Temos ótimos exemplos de organizações esportivas que estão estabelecendo novos conceitos de gestão, que entenderam a necessidade de se trabalhar com esporte de maneira transparente, ética e profissional.
Nessa hora buscar caminhos é indispensável. Assim como o diálogo com todo o movimento esportivo. Sem ele, qualquer iniciativa perde força, e mais, perde legitimidade.
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