A semana passada trouxe uma notícia importante que merecia muito mais destaque e repercussão. Avançou na Câmara o Projeto de Lei 9622/2018 que acrescenta à Lei Pelé (Lei nº 9.615) um dispositivo que exige de clubes de futebol e entidades esportivas a promoção de medidas de proteção de crianças e adolescentes contra a violência sexual, como condição para receber recursos de bancos públicos.
O projeto é uma espécie de “compliance estatal esportivo”. Ou seja, o Estado cria uma regra de relacionamento com o esporte. Além disso, essa regra reforça caminhos legais já existentes que determinam a responsabilidade das entidades esportivas no cuidado com os menores.
A gente pode partir lembrando os artigos 5º, 6º, 7º, 217 e 227 da Constituição Federal. O que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente em seu artigo 4º e também tratados universais de proteção ao menor.
A medida mostra força do Estado na proteção do menor sem atacar a autonomia esportiva, já que coloca a regra como uma condicionante para uma relação Estado e Esporte.
A impunidade ainda é uma realidade revoltante no Brasil quando o assunto é crime sexual contra menores. A cada hora, 3 crianças são vítimas de abuso no país e apenas cerca de 10% dos casos são denunciados.
Esse é um problema que acontece em casa, nas ruas, nas escolas, e dentro das entidades esportivas. Por isso, a responsabilidade é de todos. Dois casos recentemente chocaram o mundo e tiveram consequências exemplares.
Os exemplos dos EUA e da Inglaterra
Em dezembro do ano passado, após cinco anos de batalhas judiciais, as vítimas de abuso sexual do ex-médico da equipe feminina de ginástica dos Estados Unidos, Larry Nassar, chegaram a um acordo com a Federação Americana de Ginástica, os Comitês Olímpico e Paralímpico americano e suas seguradoras. As ginastas receberão ao todo cerca de US$ 380 milhões (R$ 2,1 bilhões).
Um pouco antes, em junho de 2021, na Inglaterra, uma investigação independente apontou falhas de clubes e da própria federação em um dos maiores escândalos de abuso contra menores da história do futebol inglês. Um relatório de mais de 700 páginas que mostrou a falta de mecanismos internos de controle e apresentou caminhos necessários a serem tomados pelas entidades esportivas na proteção de atletas.
Um na Inglaterra, outro nos Estados Unidos. Dois casos históricos que reforçam compromisso legal de clubes e federações na proteção de atletas e servem também de exemplos para caminhos necessários a serem tomados no Brasil.
E no Brasil
As entidades esportivas também precisam proteger os menores. Não só porque o esporte tem o compromisso legal de ajudar na formação das crianças, mas também porque vários crimes de abusos contra menores acontecem dentro das entidades esportivas. Temos casos na natação, na ginástica, no futebol, recentemente na canoagem e por aí vai.
A realidade é triste, e condenável: a maioria das entidades esportivas que trabalham com crianças e adolescentes no Brasil não tem um programa específico de atendimento e aconselhamento para atletas de base, que ajude na conscientização, denúncia e combate a crimes de assédio e violência sexual.
O discurso de que a responsabilidade de combater esse tipo de crime é do Estado me parece mais um dos exemplos da falta de responsabilidade social de alguns de nossos dirigentes. O esporte de formação pode até ser um negócio, mas ele não pode deixar de assumir compromissos necessários quando se lida com crianças e adolescentes. Nossa legislação deixa isso bem claro.
O próprio movimento esportivo sabe disso. Nas mudanças apresentadas pelo Código de Ética da FIFA em 2019, apareceu a inclusão do abuso e a exploração sexual como punições específicas dentro do artigo 23. A infração tem uma pena mínimo de dez anos, mesmo tempo de casos de pagamento de propina e desvio de verba. Além disso, a FIFA estabeleceu que a proteção das vítimas de assédio sexual deve ser reforçada.
Mesmo sabendo que a prevenção é sempre o melhor caminho, existem dispositivos legais para se punir esse tipo de crime. No Brasil, a Lei Joanna Maranhão e a Lei Pelé avançaram nessa questão.
Mas é preciso avançar. Existem projetos importantes no Congresso que precisam ser levados adiante. Eles tratam de questões fundamentais, como registro obrigatório de clubes e escolinhas em conselhos tutelares e exigência dos formadores de certidão negativa de antecedentes criminais daqueles profissionais que irão trabalhar com as crianças e adolescentes.
O PL 9622 é mais uma irritação provocada pelo Estado. E essas irritações acontecem quando o esporte não consegue se proteger de maneira autônoma. O bom é que essas irritações costumam provocar transformações.
Crédito imagem: iStock
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