Mais uma vez a temporada do futebol brasileiro começa, e mais uma vez a arbitragem leva torcedores e jogadores a homenagear suas mães. Já são inúmeros os casos de pessoas descontentes (para usar um termo sutil) com o desempenho dos árbitros nesse começo de temporada. Entra ano, sai ano, a sensação que fica é de que a arbitragem não pode mais piorar. E todo ano eles provam que estávamos errados ao pensar isso no ano anterior. Mas até onde isso pode ir sem que exista qualquer problema maior?
O ano de 2020 já começa com algumas discussões importantes sobre esse tema, e vamos tentar discutir nesse texto, de maneira rápida, três questões que precisam ser mais discutidas. A primeira delas, mais óbvia, que é a preservação da integridade física e psicológica dos árbitros.
Na primeira rodada da Copa do Brasil, tivemos um jogo cheio de infelicidades. Na partida entre Caxias e Botafogo, no dia 05 de fevereiro, a equipe da casa reclamou muito de dois pênaltis não marcados. Um desses pênaltis foi claríssimo, o outro questionável. Fato é que, com o empate, a equipe da casa acabou desclassificada pelo Botafogo carioca.
Com ou sem erros de arbitragem, o que se observou após o final do jogo foi um momento de absoluta selvageria. O árbitro foi cercado por jogadores e membros da comissão técnica do Caxias e, com a demora da atuação policial, foi possível observar que foi vítima de ao menos duas agressões. Ainda que tenha errado, o que se observou ao final da partida é fato absolutamente injustificável. E é para coibir que fatos como esse ocorram que nosso Código Brasileiro de Justiça Desportiva prevê penas mais severas para agressões físicas ou verbais aos árbitros. Em caso de agressões físicas, o código prevê uma pena mínima de suspensão por 180 dias, enquanto no caso de ofensa à honra, a pena mínima é de suspensão por 4 partidas. Os tristes fatos que foram observados após aquela partida serão julgados e, certamente, punidos com o rigor que o código impõe.
A análise e eventual punição à arbitragem cabe aos órgãos de justiça desportiva, única e exclusivamente. As federações e confederações podem se manifestar sobre questões técnicas, mas não podem punir ou suspender a atuação dos árbitros. Jogadores, treinadores e dirigentes não podem, em hipótese alguma, participar de cenas como as vistas após o jogo em Caxias do Sul.
Mas a questão dos erros da arbitragem vai muito além das questões disciplinares. Não podemos nos esquecer que os jogos de futebol são eventos esportivos e, como tal, possuem consumidores. E os erros de arbitragem não fazem parte do produto adquirido pelos consumidores. Qualquer alegação de que os erros da arbitragem fazem parte do produto cai por terra quando a própria Federação Internacional de Futebol, a FIFA, autoriza a utilização de recursos tecnológicos para minimizar os erros de arbitragem. O resultado de uma partida esportiva deve ser determinado pelo desempenho das equipes competidoras, não pela arbitragem.
E a responsabilidade pela formação e escalação dos árbitros nos campeonatos de futebol é da entidade de administração que organiza a competição. No caso do futebol brasileiro, a CBF ou as federações estaduais. E havendo prejuízo ao consumidor em razão de vício do evento, a responsabilidade civil do responsável pelo evento é objetiva, ou seja, o consumidor não precisará sequer provar que houve culpa, apenas que houve o dano. E o dano nesses casos é bastante discutível, uma vez que estamos falando de um produto que vai além da sua entrega concreta. Ao escolher não utilizar recursos tecnológicos, as federações estão se expondo ao risco de serem responsabilizadas por seus erros. E não apenas pelos torcedores.
Caso um clube se sinta lesado, ainda que tenha concordado com o regulamento da competição que previa a não utilização de recursos tecnológicos pela arbitragem, este clube poderá requerer indenização da federação pelos prejuízos causados por esses erros. Nesse caso, no entanto, deverá comprovar a culpa da federação e/ou do árbitro, o que não é muito complicado, uma vez que a escolha pela não utilização dos recursos tecnológicos por si só pode ser considerada imprudente e, desta forma configurar a culpa necessária para a obtenção da indenização.
Por último, um dos temas que devem ganhar importância nesse debate envolve as apostas. Com as seguidas descobertas sobre manipulação de resultados e razão de apostas esportivas, todo o sistema precisa ser mais seguro. E essa segurança passa, entre outros, pela redução de erros de arbitragem. Essa redução de erros, por sua vez, passa pela utilização do maior número possível de recursos para auxiliar o árbitro, que é humano e pode errar. Nesse caso, saímos da esfera civil e caímos na esfera criminal.
O Estatuto do Torcedor prevê a criminalização da manipulação de resultados, com penas que podem chegar a 6 anos de reclusão. Mas não é apenas a manipulação de resultados que é definida como crime. O artigo 41-E dispõe que contribuir para que um resultado seja fraudado também é crime, com a mesma previsão de reclusão. A questão que fica é: ao escolher não utilizar recursos tecnológicos permitidos e existentes uma federação estaria praticando uma omissão suficiente para contribuir ou criar um cenário propício para a manipulação do resultado de uma partida?
Muito ainda precisará ser discutido sobre isso, mas os problemas estão na mesa, e não é de hoje.
Enquanto isso, as mães dos árbitros continuam sendo homenageadas pelo Brasil…