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Podemos treinar em paz?

Os episódios de “Quero treinar em paz” expõem de que forma o esporte, assim como tantas outras esferas do nosso cotidiano, reproduz um ambiente que agride e oprime aquelas que optam por fazer dessa paixão o seu trabalho. Pra isso, exemplificam em quatro tópicos uma infinidade de situações pelas quais atletas e outras profissionais esportivas são obrigadas a lidar, diariamente.

Esporte não é coisa de mulher. Os preconceitos enfrentados pelas mulheres no esporte se iniciam logo na infância, quando a prática de algumas modalidades lhes é negada, por ser atribuída aos homens. Quando crianças, meninas e meninos têm o esporte como ferramenta de interação social e aprendizado. No entanto, também desde logo, as meninas descobrem que alguns desses lugares lhes pertencem menos, e escutam que “a roda da altinha não é pra você” ou são mandadas “brincar de outra coisa, de menina”.

Direcionar meninas para esportes de meninas e meninos para esportes de meninos é tão absurdo quanto a própria segmentação do mercado de trabalho em profissões para homens ou para mulheres. Podemos ser professoras, mecânicas, astronautas, atletas de vôlei, futebol, esgrima, boxe. E seremos.

E se a gente tivesse tido, lá atrás, a mesma estrutura e o mesmo investimento que eles tiveram? Os investimentos no esporte masculino são em muito superiores ao no feminino, e, antes que se argumente haver diferenças de interesse do público ou de patrocínio, a discrepância não se justifica. Pelo contrário, evidencia que o esporte deve ser fomentado e impulsionado. A preterição das equipes femininas em relação às masculinas na compra e uso de equipamentos mais modernos, financiamento de viagens e apoio institucional é denunciada em um dos episódios como um gravíssimo entrave ao desenvolvimento das modalidades e alcance da alta performance por mulheres em todo o país.

Uma rotina de piadas, desrespeito e assédio. Em todo o mundo, a rotina incessante de piadas, desrespeito e assédio é grande causa do chamado “drop out”, o abandono do esporte, por atletas mulheres. No Brasil, segundo o último diagnóstico do esporte, realizado em 2016 pelo Ministério do Esporte, o percentual de “drop out” é de 39% para mulheres e 19,7% para homens.

Segundo dados da ONU, em escala mundial o índice de mulheres que deixam o esporte é cinco vezes superior ao dos homens, e, dentre as causas relacionadas, estão os abusos sofridos por elas diariamente.

Os relatos trazidos no documentário evidenciam assédios que vão desde comentários (tidos como inofensivos apenas por quem os faz) como o “vá pilotar um fogão” – feito a Priscilla Steveaux, pilota de BMX e representante da equipe brasileira na Olimpíada Rio 2016 – até situações de violência sexual sofridas por crianças e adultas, molestadas em exames médicos, treinos e competições.

Sou atleta antes de ser musa. Grande parte do assédio e do desrespeito à profissão das atletas está relacionada à extrema dificuldade, principalmente dos veículos de comunicação, de priorizar o desempenho em detrimento dos aspectos físicos. Tornar a atleta um objeto de consumo nesse sentido desvaloriza o trabalho e a dedicação empreendidos na rotina de treinos e de sacrifícios pelo esporte.

Como relata a atleta Isadora Cerullo, jogadora da seleção brasileira de rugby seven, “Pra cada uma pergunta que eu recebo sobre as minhas conquistas, eu recebo cinco sobre como eu preservo a minha vaidade. Está na hora de levar mulheres atletas a sério e parar de tratar a força feminina como tabu. Pode ser?”.

A veiculação de fotos que expõem os seus corpos fora do contexto esportivo, as perguntas em entrevistas, os anúncios publicitários, e mesmo o uniforme, grande parte desses elementos parece estar voltada para que a atleta seja objetificada em sua aparência ou sensualidade, quando o que elas querem mostrar em primeira mão é o quanto são fortes e determinadas, e o quanto se empenharam e merecem ter chegado aonde chegaram.

Em poucas linhas, trazer essas questões tem o objetivo de nos fazer pensar, ou repensar, a forma como o esporte de alto rendimento é consumido, e como tratamos as mulheres que dedicam suas vidas para fazê-lo com competência. De crianças a adultas, o massacre é incessante, e pode dar fim ao sonho. O objetivo da série de cinco episódios, e deste texto, é encorajar mulheres e meninas a trabalharem no esporte, de alto nível ou não, livres de amarras; encorajar mulheres e meninas a serem autênticas, e a serem o que quiserem, porque o lugar ao qual elas pertencem é aquele em que elas queiram estar.

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