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Poder punitivo da entidade de prática desportiva empregadora

Ana Cristina Mizutori e Rafael Teixeira Ramos

Os inteirados do esporte certamente acompanharam nas mídias recentes uma sequência de ações punitivas tomadas por clubes empregadores em desfavor de determinados atletas profissionais de futebol, os quais, por diferentes circunstâncias, incorreram em atos contrários à integridade, a ética e aos valores do desporto.

Recentemente, a imprensa veiculou notícias de punições que foram desde advertência à rescisão do contrato de trabalho de atletas prestigiados. Seja pelo descumprimento dos protocolos sanitários do COVID-19, sendo estes tanto imposições cogentes quanto normas de condutas internas das agremiações desportivas empregadoras, seja por suposta afronta às tradições do clube, ou ainda, por ato racista em total afronta à preceitos constitucionais.

Os limites da relação de trabalho ante à imposição dos protocolos de segurança e saúde para mitigar contaminações do COVID-19 foi abordado por esta coluna no fim de março.

Hoje a interpelação versa acerca do poder disciplinar do empregador desportivo em situações contrárias à integridade, a ética e aos valores do esporte.

 Para tanto, vale ressaltar de início, que o poder disciplinar e diretivo do empregador compreende uma prerrogativa relativizada pelos princípios dos valores sociais do trabalho e o princípio da dignidade da pessoa humana.

A jurisprudência demonstra a possibilidade do empregador se valer de controle às mensagens eletrônicas trocadas no computador da empresa, assim como câmeras de vigilância instaladas em áreas comuns da empresa, excetuando locais como banheiros e vestiários. Nessa linha, apesar da legislação vedar expressamente a revista íntima (art. 1º, Lei 13.271/16 e 373-A, inciso VI, da CLT), os julgados trabalhistas conferem legitimidade em determinados casos de revistas aos pertences e aos empregados, desde que cumpram certos requisitos circunstanciais.

O poder diretivo compreende o poder regulamentar, já o poder disciplinar refere-se ao poder fiscalizatório,      que a partir do princípio da reserva legal, permite a aplicação de advertência, suspensão e até demissão por justa causa, a despeito das ressalvas dispostas pela lei e súmulas e jurisprudências.

O poder disciplinar atribui ao empregador o direito de estabelecer regras para organização interna da empresa, a fim de assegurar a correta prestação laboral do empregado diante dos interesses econômicos da companhia. Pauta-se em preceitos constitucionais como a livre iniciativa, direito de propriedade, direito de empresa, liberdade de constituição, organização e exercício da atividade empresarial.

 O poder fiscalizatório alcança a forma de monitorar a atividade laboral e não se trata de um direito absoluto, já que os limites do conjunto de prerrogativas conferido ao empregador para impor medidas capazes de assegurar a direção, fiscalização e disciplina de seus empregados se esbarram nas premissas da Declaração Universal dos Direitos Humanos, nos princípios constitucionais fundamentais, e em Súmulas como, por exemplo, nº 51, 77, 443 do Tribunal Superior do Trabalho.

A Lei Geral sobre o Desporto não tipifica expressamente a forma em que  o poder disciplinar da agremiação desportiva empregadora pode ser operada, dispondo apenas sobre sanções disciplinares competentes à Justiça Desportiva e aos regulamentos emanados pela entidade de administração desportiva.

Não obstante inexistir menção expressa das sanções laborais, não pressupõe, no entanto, que uma sanção trabalhista não possa, de forma adjacente, ser aplicada posteriormente a uma pena administrativa desportiva. Por exemplo,  em casos em que um atleta que é condenado na Justiça Desportiva por receber mala preta ou mala branca, ou por agredir um colega de elenco durante a partida, ou alguma outra conduta desmedida e que confronte com a objetividade jurídica da sua prestação laboral.

Isso porque a relação de trabalho do atleta profissional se pauta na ordem jurídica desportiva e na ordem jurídica trabalhista, de forma que se permite a aplicação de sanções de cunho trabalhista e desportivo concomitantemente, sem que incorra em “bis in idem”.

A obra “Curso de Direito do Trabalho Desportivo” (RAMOS, Rafael Teixeira, 2021), leciona que no ordenamento jurídico de Portugal há previsão expressa de penas laborais no Código do Trabalho vigente, assim como já dispunha na legislação trabalhista anterior.

O direito lusitano também tipifica as sanções ao empregado atleta, por meio da Lei nº 54/17, que versa sobre o regime jurídico do contrato de trabalho do praticamente desportivo, do contrato de formação desportiva e do contrato de representação ou intermediação de Portugal.

Das sanções laborais, a rescisão do contrato de trabalho por justa causa é a mais gravosa, portanto, deve ser aplicada em ocasião de substancial relevância. Muito embora no Brasil a estabilidade do contato de trabalho seja exceção à regra, há previsão legal para a demissão por justa causa como parte do poder potestativo do empregador.

Dentre os casos veiculados na imprensa recentemente, um atleta teve o seu contrato de trabalho rescindido após ser flagrado manifestando expressões de cunho racista durante uma partida de um jogo eletrônico.

A situação ocorreu fora da prestação laboral, mas, em se tratando de uma personalidade notória, cujo expressivo alcance tornou sua conduta contrária à dignidade humana e preceitos constitucionais fundamentais ainda mais inapropriados, afetando diretamente à imagem da agremiação desportiva que o emprega.

Se ao trabalhador comum, a demissão por justa causa consiste em causa de extrema exceção, aos empregados atletas, ainda mais. Dado que nos contratos especiais de trabalho desportivo há previsão de cláusula compensatória e indenizatória, ou seja, multa pela rescisão antecipada do contrato de trabalho, além do fato de que as agremiações desportivas deixam de obter receitas de uma possível transação futura deste atleta, a rescisão motivada por não ser uma decisão acertada do ponto de vista financeiro.

Contudo, em uma situação de manifesta contrariedade aos Princípios da Igualdade e da Dignidade da Pessoa Humana, e em um crescente movimento de erradicação da discriminação ou preconceito em razão da raça, consagrado na Constituição Federal, em seu art. 3º, inciso IV e art. 5º , inciso XLII, impõe à agremiação desportiva empregadora, como integrante do movimento esportivo, e como tal, intendente do alcance e influência que o esporte desempenha em uma sociedade, e responsável pela manutenção da finalidade social do esporte, o torna incumbido de assegurar o espírito esportivo e a adequada conduta de seus membros.

O poder disciplinar do empregador imprime o devido balanço entre a intimidade e vida privada do empregado e o direito de propriedade e livre iniciativa privada do empregador.

No esporte, o controle disciplinar da relação de trabalho se amplia. Enquanto ao trabalhador comum o ordenamento jurídico se apoia na “Teoria dos Efeitos Reflexos”, no desporto, a aplicação do art. 482 (justa causa), alínea k (ofensa à honra do empregador), da Consolidação das Leis do Trabalho se respalda na “Teoria dos Efeitos Reflexos Acentuados”, tendo como objetivo as especificidades da relação laboral desportiva.

Levando em conta a função precípua do esporte, a entidade de prática desportiva, como empregadora, deve assegurar a sua honra, de forma que se torna inviável a manutenção da relação de trabalho com aquele que age em desconformidade com os parâmetros mínimo de boa conduta moral, ética, em respeito aos valores humanos.

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