A Federação Mundial de Rúgbi (World Rugby) publicou neste mês de outubro um guia às associações nacionais recomendando que as mulheres transgêneros sejam excluídas das competições. Em São Paulo, um projeto segue em pauta na Assembleia Legislativa para proibir a participação de atletas trans. A pauta é a mesma, mas por caminhos completamente diferentes. O que se toma por aqui é especialmente equivocado.
O PL 346/2019 segue em pauta para ser votado na Assembleia Legislativa de São Paulo. Nele, um deputado acredita ter encontrado um caminho que o movimento esportivo mundial, com especialistas, ciência e muito diálogo ainda segue estudando. Para ele, a questão dos transgêneros no esporte é simples: o sexo biológico é o único critério para definir se um atleta irá competir no masculino ou no feminino.
Não. Não dá para concordar.
Primeiro porque a Assembleia esta perdendo tempo – e desperdiçando dinheiro – discutindo sobre o que não pode juridicamente.
Segundo, porque há questões fundamentais de direitos humanos envolvidas nessa história.
Esqueça se você é a favor ou contra transgêneros no esporte, o mesmo vale para o VAR no futebol (sim, tem político querendo discutir o tema), ou para qualquer assunto relacionado ao jogo (não interessa o que você pensa, ou se eu sou a favor) e à organização interna das entidades esportivas.
A discussão que se propõe aqui não é sobre uma causa que se defende, mas sobre a estrutura jurídica do movimento esportivo, leis e sobre proteção de direitos humanos.
O projeto de São Paulo
Pelo PL, o sexo biológico seria o único critério para definir se um atleta irá competir no masculino ou no feminino.
Se for aprovado pelos deputados (precisa de maioria simples dos presentes no dia da votação) e sancionada pelo governador João Doria (PSDB), a lei determinará que mulheres transgêneros deverão competir entre homens; e homens trans, entre mulheres. O texto é de autoria do deputado estadual Altair Moraes (PRB)
O relator Heni Ozi Cukier (Novo) afirmou que o projeto é constitucional. Segundo ele, o “Estado tem competência concorrente com a União para legislar sobre o desporto, como prevê a Constituição Federal” e a “a Lei Pelé não traz em seu bojo qualquer regulamentação sobre a participação de transexuais em competições esportivas”.
Conversei com muita gente sobre o assunto, já pesquisei, li e escrevi muito aqui no Lei em Campo sobre o assunto. No meu entendimento, não é bem assim.
Por que não pode
Esse PL não poderia nem passar pela Comissão de Constituição de Justiça da Assembleia Legislativa. Por conta da nossa Constituição, por princípios de Direitos Humanos e pela lógica esportiva.
Sim, tanto a União quanto o Estado têm competência para legislar sobre o esporte. A Lei Pelé é um exemplo.
Porém, há várias questões esquecidas pelos deputados, algumas que tornam o projeto inconstitucional.
O inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante a autonomia das entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento.
O PL também ataca vários princípios fundamentais da CF estabelecidos no art 5º, como o da não discriminação.
Além disso, esse projeto de lei fere as resoluções da ONU e da Unesco, das quais o Brasil é signatário. Ou seja, é um problema de direito constitucional e de direito internacional.
A medida é inconstitucional e discriminatória, até porque não há prova irrefutável de ganho desportivo de mulheres trans sobre mulheres.
Além de princípios universais de direitos humanos e da Constituição Federal, é preciso lembrar da autonomia esportiva. Ela garante que nenhuma lei estadual – nem federal (!) – possa banir do esporte alguém que o movimento esportivo transnacional já disse que pode participar.
Importante jamais esquecer que quem determina as regras da competição são as confederações internacionais de cada modalidade. Seria um problema gigante São Paulo ter uma regra diferente do Brasil e de todos os outros lugares do mundo.
Se essa ideia for adiante, o Brasil pode ser punido pelo movimento esportivo, podendo ficar de fora de competições internacionais.
A grande discussão do movimento esportivo
A participação de atletas trans tem sido uma das grandes discussões do esporte. Os dois lados têm argumentos que se baseiam na busca pela igualdade.
Quem defende a participação lembra a igualdade de direitos e o necessário combate à discriminação.
Quem é contra, levanta a bandeira da igualdade de condições entre os competidores, o princípio da “paridade de armas”.
O direito esportivo tem como um dos princípios fundamentais o da “paridade de armas”. Ou seja, dar condições iguais aos competidores para garantir a “incerteza do resultado”, que também é da natureza do esporte. Em tese, homens têm vantagens físicas, como força, sobre mulheres, o que levaria um atleta trans autorizado a jogar a romper com esse princípio.
Acontece que a não discriminação também é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico (inclusive o Brasil), que também prega a bandeira da igualdade.
Além disso, está na Carta Olímpica, no sexto princípio fundamental do Olimpismo, que é condenada qualquer discriminação dentro do esporte.
E tudo isso tem sido considerado nessa revolução recente que vive o esporte.
Nessa discussão, um personagem precisa ser protagonista: a ciência.
O que diz a ciência
Confrontados com casos como o de Tifanny do vôlei o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio TAS/CAS têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.
Mas calma lá para quem já quer gritar contra o caminho que o texto vai seguindo.
O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado por testes científicos e pela entidade que não quer permitir a participação do atleta. Não é o atleta que tem que provar que pode competir.
Em função de decisões dos tribunais e dos princípios olímpicos, o COI estabeleceu, em novembro de 2015, novos critérios para permitir a participação de atletas transgêneros. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. A cirurgia de redesignação sexual não é mais obrigatória.
Embora ainda se verifique que as entidades esportivas têm tentado, com estudos científicos, proteger critérios para a preservação de uma competição mais igual, de acordo com princípios do direito esportivo, é possível também perceber uma clara abertura a questões de direitos humanos. Ou seja, a Lex Sportiva tem permitido diálogos entre diferentes ordenamentos jurídicos e se desenvolvido com isso. São os entrelaçamentos transconstitucionais que proporcionam aprendizados.
Repito: esse assunto tem sido discutido no Brasil e no mundo. Com argumentos inteligentes e científicos dos dois lados. Acredito que o caminho tomado pelo COI e pelos tribunais, de controlar e acompanhar esse processo de transição, respeitando a natureza de cada um e tentando proteger a essência do jogo, seja o mais adequado.
A proposta da federação de Rúgbi recebeu duras críticas de entidades de proteção de direitos humanos. Elas alegam que a proibição não tem comprovação científica de ganho desportivo e que, por isso, seria discriminatória.
O presidente da federação, Bill Beaumont, respondeu dizendo que mudanças podem ocorrer. “Nós reconhecemos que a ciência continua evoluindo e nos comprometemos a rever essas recomendações”, disse Beaumont à BBC.
A discussão continua. A reflexão é permanente e o diálogo sempre indispensável. Mas não entre políticos.
Se a Assembleia levar essa questão adiante, o STF, lá na frente, terá que agir. E declarando a Lei inconstitucional, mais uma vez o dinheiro suado do contribuinte que vive num país em crise terá sido desperdiçado de maneira irresponsável.
Acredito (e torço) para que os deputados analisem bem a questão.
Bom trabalho.
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