Medalhista de prata no arremesso de peso feminino, a norte-americana Raven Saunders decidiu aproveitar o momento da premiação para protestar contra o preconceito. A atleta de 25 anos, que é mulher, negra e lésbica, cruzou os punhos sobre a cabeça formando um ‘x’, gesto que representa apoio aos oprimidos que lutam contra a discriminação dentro e fora do esporte.
Após o ato, Raven declarou que o gesto representa a “interseção onde todas as pessoas oprimidas se encontram” e que queria chamar a atenção para todas as “pessoas que estão lutando e não têm plataforma para falar por si mesmas”.
“No fim das contas, realmente não nos importamos. Grito para todos os meus negros. Grito para toda a minha comunidade LGBTQ. Grito para todo o meu povo que lida com saúde mental. No fim das contas, entendemos que isso é maior do que nós e maior do que os poderes constituídos. Entendemos que há tantas pessoas que estão olhando para nós, que estão procurando para ver se dizemos algo ou se falamos por eles”, declarou Raven.
Essa foi a primeira manifestação do tipo em Tóquio-2020. Apesar de ter flexibilizado em partes a Regra 50 da Carta Olímpica, que fala sobre manifestações nos Jogos, o Comitê Olímpico Internacional (COI) manteve o veto durante o pódio, permitindo que eles acontecessem apenas em coletivas de imprensa e em situações que não necessitam de interrupções, garantindo o respeito pelos outros competidores.
O Lei em Campo já ouviu especialistas sobre as flexibilizações feitas pelo COI na Regra 50 da Carta Olímpica. Para eles, as mudanças adotadas não podem ser consideradas um avanço.
“É um retrocesso. Cidadania significa poder se colocar como sujeito de direito e opinar, debater, discutir a realidade do seu país, da sua região, do mundo. Não é possível que acreditem ser democrático calar os esportistas”, afirma Mônica Sapucaia, advogada especialista em direitos humanos.
“Eu entendo que qualquer posicionamento que seja em favor da igualdade, contra o preconceito e na defesa de valores universais de direitos humanos, não pode ser punido. Pelo esporte e pelos governos. Mas para isso, esse tem que ser o entendimento da sociedade e do movimento esportivo. Essa proteção perde força com o posicionamento dos atletas, e regras internas aceitas acabam ganhando força”, avalia Andrei Kampff, jornalista, advogado especialista em direito desportivo e colunista do Lei em Campo.
Para Mônica Sapucaia, “a ideia de que a Olímpiada não pode ser um espaço de protesto é uma atitude antidemocrática, que não entende o ambiente de sociabilidade e de diálogo. Esporte faz parte da forma como a sociedade se entende, se observa, se representa, logo ele faz parte da conversa política”.
“Entidades privadas não podem determinar o que o atleta fale ou deixe de falar. Isso é um cerceamento direto à liberdade de expressão, ao direito de posicionamento e a forma como você dialoga com a sociedade como um todo. É impensável que no estado direito tenha uma norma que proíba as pessoas de se posicionarem dentro dos parâmetros legais”, completa Mônica.
“As ideias que servissem para justamente reafirmar os valores olímpicos, deveriam ser, inclusive, incentivadas. Assim, defesas do meio ambiente, da diversidade, da igualdade entre os povos, que sejam contrárias ao racismo e à exclusão de qualquer natureza, deveriam, na minha opinião, passar a ser aceitas em qualquer local, devendo ser regulado o que poderia ser usado em prol dessa manifestação de ideias”, ressalta Ana Paula Terra, advogada especialista em direito desportivo.
A Regra 50 da Carta Olímpica determina que “nenhum tipo de demonstração ou propaganda política, religiosa ou racial é permitida em qualquer evento olímpico, local, ou outras áreas”. Atualmente, só é liberado que o atleta se manifeste livremente nas zonas mistas e durante entrevistas. Caso aconteça o descumprimento, é previsto punições desportivas, suspensões e multas, podendo, inclusive, causar a perda dos patrocínios ao competidor.
Desde o começo das discussões sobre mudanças na Carta Olímpica, o COI alega que mantem a regra dessa forma para “proteger a neutralidade do esporte e dos Jogos Olímpicos”.
Em um relatório realizado no ano passado, a Comissão de Atletas apresentou sugestões ao COI de locais que seriam adequados para manifestações de atletas. São eles: cerimônias de abertura e encerramento, na Vila Olímpica, em roupas usadas pelos atletas, nas redes sociais e mensagens digitais durante a apresentação dos esportes.
Uma pesquisa também foi incluída no documento. Nela, 70% dos entrevistados acreditam que as competições e cerimônias oficiais não são espaço para manifestações e protestos. Ao longo dos 11 meses, 3.547 atletas de 185 países e 41 modalidades esportivas foram ouvidas. Para 67%, o pódio também não deve ser palco de manifestações.
Ainda no relatório, 48% dos atletas disseram que acreditam ser importante que sejam criadas “oportunidades para a expressão dos atletas durante os Jogos”. Eles sugerem também que haja um momento durante a cerimônia de abertura do evento para a “solidariedade contra a discriminação”.
Ao fim, o relatório conclui que muitos atletas se utilizam do argumento de liberdade de expressão para protestar. No entanto, a Comissão de Atletas afirmou que, após uma consulta com especialistas em direitos humanos, a liberdade de expressão dos atletas “não é absoluta” e “pode ser limitada” durante os Jogos Olímpicos.
Como a manifestação de Raven Saunders ocorreu fora de uma área permitida, o COI anunciou, na manhã desta segunda-feira (2), que analisará o gesto da atleta junto ao órgão internacional que rege o atletismo e com o Comitê Olímpico e Paralímpico dos Estados Unidos.
Crédito imagem: Francisco Seco/AP
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