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Por que é tão difícil (e provavelmente desnecessário) regulamentar os eSports?

Por Hudson de Paiva Barbosa Junior

Os esportes eletrônicos, ou simplesmente esports, guardam diversas peculiaridades em sua constituição. Sendo um modelo esportivo sui generis, possuem qualidades únicas, como a prática dentro de um ambiente 100% virtual, a possibilidade de ausência de reunião entre os competidores, bem como uma redução considerável de esforço físico (quando comparado às modalidades tradicionais). Contudo, talvez a principal peculiaridade dos esports esteja no fato de que existem dezenas de modalidades que, por sua vez, subdividem-se em outras dezenas de categorias.

As modalidades de esports se mostram consideravelmente assimétricas, seja pela quantidade de jogadores necessários, pelo estilo de jogo ou mesmo pelo ambiente virtual em que as partidas são disputadas. É possível distinguir uma modalidade de esporte eletrônico por suas características comuns, podendo, a princípio, ser individual ou coletiva. As modalidades individuais são aquelas disputadas por apenas um profissional, como os simuladores de corrida, os Fighting games, e jogos de futebol. Já as modalidades coletivas exigem uma equipe composta de, ao menos, 2 jogadores para serem disputadas, é o caso dos jogos FPS (First-Person Shooter), MOBAS (Multiplayer Online Battle Arena) e Battle Royale[1].

Por outro lado, as categorias são as subdivisões dessas modalidades, que consistem, basicamente, nos títulos que fornecem o ambiente para as disputas esportivas. Como exemplo de categorias, pode-se citar jogos famosos como League of Legends, Free Fire e Counter Strike: Global Offensive, títulos que pertencem às modalidades MOBA, Battle Royale e FPS, respectivamente.

Ocorre que cada categoria possui uma desenvolvedora/publisher[2], que detém a propriedade intelectual do título e, assim, todo o poder para ditar como ele poderá/deverá ser utilizado. Dessa forma, são essas empresas que estabelecem as regras para a exploração comercial de seu game, inclusive quanto à elaboração de campeonatos. Isso faz com que se crie uma grande diferença em relação aos modos de organização de campeonatos, assim como às regras quanto a participação e regulamentos das competições de cada jogo, mesmo porque grande parte dos torneios são organizados pela própria desenvolvedora/publisher do jogo.

Aliado às peculiaridades constantes em cada categoria, o fato de os torneios disporem de regras completamente distintas cria uma enorme dificuldade quando se trata de regulamentação dos esportes eletrônicos. Isso, pois seria impossível estabelecer uma legislação única que, de forma analítica, atendesse a todas as modalidades com a mesma especificidade, como ocorre, por exemplo, no futebol.

Os esports se dividem em diversas modalidades e categorias que em muito se distinguem, de modo que uma regulamentação, ainda que elaborada com o intuito de dar uma maior segurança jurídica para os stakeholders e sustentabilidade para o mercado, pode, acidentalmente, ir de encontro ao regulamento de uma ou outra desenvolvedora e acabar inviabilizando toda a operação.

Cada categoria possui um ecossistema complexo único, regulado pelas desenvolvedoras/publishers, ao qual as organizações e jogadores se adaptam para pertencer. Essa sistemática se estabeleceu sem qualquer interferência do legislador, mas se adequando às legislações vigentes nos países em que se inseriu. No Brasil, um exemplo disso é o fato de as organizações já oficializarem com seus atletas vínculos desportivos por meio de contratos moldados pela Lei 9.615/98, como Contrato Especial de Trabalho Desportivo e de Exploração de seu Direito de Imagem.

Assim, considerando as diferenças existentes entre as modalidades, elaborar uma legislação que atenda a todas de forma equânime se mostra algo utópico que somente se apresentaria como opção viável no caso de uma legislação extremamente geral, o que, no entanto, é desnecessário neste momento.

A estrutura dos campeonatos organizados, principalmente no que tange aos títulos mais conhecidos, é bastante complexa e idealizada sob a égide de regulamentos robustos que discriminam detalhadamente a dinâmica das temporadas, regras sobre a organização do torneio e dos jogos/partidas, bem como apresenta controle de comportamento e sanções em caso de descumprimento. Ou seja, as próprias desenvolvedoras/publishers se mostram, na maioria dos casos, aptas a regulamentar seu próprio ecossistema.

É importante destacar que não se defende aqui a inobservância da legislação vigente, tampouco a falta de fiscalização e aplicação de sanções nos casos em que as desenvolvedoras/publishers abusarem de seu direito, mas tão somente a desnecessidade do estabelecimento de uma regulamentação própria para os esportes eletrônicos, face à autonomia que as empresas possuem para “legislar” dentro de seu próprio sistema.

Por fim, salienta-se que a ausência de regulamentação específica não implica no não reconhecimento dos esports como gênero esportivo, eis que, conforme pontua Antônio Bratefixe Junior[3]:

“A definição de uma prática como esportiva independe de uma lei ou qualquer outra definição normativa do Estado. O esporte é uma manifestação social, tendo o seu reconhecimento dado pela própria difusão de sua prática pela coletividade, e pela existência dos elementos competitivos, com regras estabelecidas e um cenário desenvolvido, profissional e com medidas punitivas e organizacionais em suas competições. Não será uma lei que definirá se uma prática é ou não esporte”.

Logo, a ausência de uma regulamentação específica não implica no desconhecimento dos esportes eletrônicos como um gênero esportivo, porquanto se trata de uma manifestação social que independe de outorga estatal, eis que – entre outras razões – constitui sistema competitivo desenvolvido e organizado, que conta com regras estabelecidas e recompensas prefixadas.

CONCLUSÃO

Portanto, nota-se que, apesar de a ausência de regulamentação específica não implicar no desconhecimento dos esports como gênero esportivo, o fato de estarem divididos em dezenas de modalidades e categorias constitui óbice para o estabelecimento de uma legislação que busque regulamentar o setor, na medida em que as divisões e subdivisões do esporte geram grande dissimetria em sua constituição. Além disso, as desenvolvedoras e publishers instituem regras muito distintas umas das outras, de tal modo que o legislador, ao estabelecer uma regulamentação única para todas as categorias, poderia, ainda que com a intenção de levar segurança jurídica para o mercado, interferir no ecossistema de um ou outro jogo a ponto de inviabilizar sua operação esportiva.

Crédito imagem: Shutterstock

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Hudson de Paiva Barbosa Junior – advogado, Membro do Jurídico Interno da Netshoes Miners, Aluno do MBA em Negócios no Esporte e Direito Desportivo do CEDIN e Membro do GEDD – São Judas.

[1] Cada uma das modalidades – apesar de pertencerem ao gênero esports e, portanto, serem praticadas dentro de um ambiente 100% virtual, sem a necessidade de que os jogadores estejam reunidos – apresenta qualidades completamente distintas umas das outras, que alteram ambiente externo (equipamentos dos jogadores e/ou posição do mouse/teclado) e, principalmente, o ambiente interno. Isso se dá devido ao fato de cada modalidade possuir seu próprio sistema de disputas, seus próprios objetivos e ambientes virtuais completamente distintos (mapas), o que influencia diretamente na forma de jogar, fazendo com que um profissional de FPS, por exemplo, não seja necessariamente um bom jogador de MOBA.

[2] Desenvolvedora é a responsável por idealizar o conceito do jogo, bem como por transformá-lo em realidade em forma de gráficos, gameplay etc. São elas quem constroem o jogo do ponto de vista técnico, do início ao fim. Como exemplos de desenvolvedoras, pode-se citar: Riot Games e Activision-Blizzard. Já a publisher é responsável pela distribuição do game, como é o caso da Garena. Via de regra, a propriedade intelectual de um jogo é de sua desenvolvedora ou da publisher.

[3] BRATEFIXE J., Antônio Carlos. Introdução ao Estudo do Esports Law: O Direito do Esporte Eletrônico. Editora Mizuno, Leme/SP, 2021.

 

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