Search
Close this search box.

Por que João Lyra Filho defendia a autonomia esportiva nas suas obras?

Leia esta passagem do autor sobre o qual estamos trabalhando na coluna, o Pai Fundador do Direito Esportivo brasileiro, João Lyra Filho:

“Assim, o desporto deverá sobreviver, superior, sobranceiro e soberano – fiél ao seu próprio destino e apenas submisso a si mesmo, isto é, aos preceitos da moral desportiva e às regras do direito desportivo.”

Esse trecho da página 117 de seu livro “Introdução ao Direito Desportivo”, de 1952, é direcionado à preservação da autonomia esportiva. João Lyra Filho, ao dedicar sua obra pioneira e clássica do direito esportivo também ao entendimento de que haveria a necessidade de proteção do sistema universal do esporte das interferências estatais, fez isso em razão da necessidade de preservação de sua especificidade orgânica. Trabalhava, portanto, com a necessária observância da autonomia esportiva.

Entendia ele, ainda na primeira metade do século passado, ser possível resguardar a autonomia esportiva nas possíveis contrapartidas exigidas pelo Estado quando do oferecimento de financiamento ou outras formas de fomento às entidades do esporte:

“Não se observa correlação compatível na soma dos deveres impostos na táboa dos direitos concedidos. A contrapartida dos direitos é débil em face das forças dos deveres. Daí porque se pressupõe que o órgão é dominado por linhas exageradamente intervencionistas. O Estado, em verdade, não deve interferir na ordem das atividades eminentemente privadas, sobretudo aquelas, como o desporto, que se alimentam do teor democrático mais direto, para determinar uma disciplina a que não corresponda concessões, favores e franquias que justifiquem, sem constrangimento, uma vida de relação útil entre os princípios de sua organização e os fins de funcionamento das referidas entidades.” (p. 188)

E Lyra Filho defendia a autonomia mesmo em uma época em que poucas pessoas no mundo assim procediam. Àquela época, o debate sobre esse instituto era muito incipiente. Conforme narra Chappelet (L’autonomie du sport enEurope, 2010, p. 11):

“Somente em 1949 a palavra ‘autonomia’ aparece na Carta Olímpica…”.

Nas versões anteriores da norma, a previsão, segundo a concepção coubertiana, era da independência dos próprios membros da entidade, ainda que muitos fossem ligados às famílias reais.

A Carta Olímpica de 1949, portanto, inova ao adotar a autonomia dos comitês olímpicos nacionais nos seguintes termos:

National Olympic Committees.
25.
[…]
All arrangements concerning its taking part in the Olympic Games and all communications on such matters shall be addressed to it. It must be independent andautonomous.

O que esse dispositivo da Carta Olímpica trazia de exigências para que uma entidade nacional pudesse ser considerada como representante do olimpismo em seu próprio país já era bastante conhecido dos esportistas brasileiros, vista a crise dos anos de 1930, conhecida como “Cisão Esportiva” (ainda falarei sobre isso em outra coluna). Contudo, a inscrição do termo autonomia, mesmo que presente em trabalhos acadêmicos europeus, como de Jean Loup (1930), não se encontrava normatizada, seja no campo da Lex Sportiva – o próprio COI somente a partir de 1949 –, seja na seara estatal interna do Brasil. Houve certo pioneirismo de João Lyra Filho no trato da matéria. Apesar disso, ele não cita a mudança ocorrida três anos antes na Carta Olímpica em “Introdução ao Direito Desportivo”, nem mesmo como justificativa para o debruçar sobre o tema.

Qual era, portanto, o fundamento à autonomia esportiva na obra lyriana? A defesa que Lyra Filho fazia do instituto da autonomia esportiva não se apoiava em normas estatais, nem mesmo em regra específica própria do sistema universal do esporte que ele visualizava existir. Ao contrário de parte importante dos juristas brasileiros seus contemporâneos, Lyra Filho não demonstrava seguir uma linha normativista.
A lei geral do esporte daquele tempo, o Decreto-Lei 3.199, de 1941, tutelava explicitamente a autonomia das entidades, ainda que se possa entender que a tenha reconhecido implicitamente nos arts. 9º e 10. Não há, porém, no livro “Introdução ao Direito Desportivo” apoio nesses dispositivos ou em outros quaisquer para a justificativa da autonomia esportiva.

Sua preocupação com os fundamentos da autonomia seria tratada de modo mais radical. A autonomia para Lyra Filho apoiava-se na necessidade de preservação da linguagem própria do esporte e, consequentemente, da linguagem jurídica que circulava no sistema universal “self-executing” – como ele próprio denominou (id., p. 167) – e que hoje conhecemos por Lex Sportiva.

Vai se desenhando, dessa forma, o arquétipo da autonomia esportiva na pioneira obra do Direito Esportivo brasileiro, e espero aprofundar ainda mais os fundamentos teóricos dessa construção na próxima coluna.

Compartilhe

Você pode gostar

Assine nossa newsletter

Toda sexta você receberá no seu e-mail os destaques da semana e as novidades do mundo do direito esportivo.