Nesta segunda (26) veio a confirmação de que a cidade de Jeddah, na Arábia Saudita, vai sediar o Mundial de Clubes 2023, que acontecerá no final deste ano. A escolha – importante dizer – não representa um crime, mas é mais uma grande derrota da política de direitos humanos da FIFA.
Na capa do portal, a FIFA exibe o compromisso inegociável do esporte com direitos humanos. O Estatuto da entidade (espécie de constituição do futebol mundial ) também traz esse compromisso, além da FIFA ter apresentado em 2017 uma política interna de direitos humanos.
E o que a Arábia Saudita tem a ver com isso?
A Arábia Saudita é um país que não respeita a proteção internacional de direitos humanos. Segundo a Anistia Internacional, o país pratica uma repressão implacável contra ativistas pacíficos, jornalistas e acadêmicos. O país está todos os anos no topo dos que mais praticam a pena de morte, com dezenas de pessoas executadas a cada ano. Além disso, tem uma política discriminatória contra mulheres e não permite a liberdade religiosa. Tem mais, a tortura é instrumento rotineiro de trabalho oficial e o país é acusado de matar e esquartejar um jornalista no exercício da profissão.
Teria mais, mas dá para parar por aí.
Esporte como máquina de lavar imagem
Claro que um país como a Arábia Saudita, assim como recentemente a China, o Qatar e a Rússia, usam de eventos esportivos para tentar melhorar sua imagem internacional. É o que se passou a chamar de Sportswashing.
O Sportwashing é uma estratégia de marketing que utiliza o esporte para reposicionar a imagem de uma marca, produto ou país. Uma estratégia antiga, usada por Adolf Hitler nos Jogos Olímpicos de 1936 para propagar a ideologia nazista, por exemplo.
A Arábia Saudita faz o papel dela, mas a Fifa entrar nessa que nos leva a uma reflexão necessária. A entidade realmente leva a sério a política de direitos humanos que tem?
Ao levar o Mundial para o país asiático, a entidade esquece direitos universais e também a própria política interna da entidade, que traz no Estatuto a proteção de direitos humanos
A política de Direitos Humanos da Fifa
É importante entender que o fato de levar a Copa ou um Mundial para um país que desrespeita direitos humanos não é um crime. Pronto. Pessoas viajam para lá para fechar negócios sem cometer crime algum. Mas lá estando, não permitir atos em defesa de direitos humanos seria possível? Creio que não. É nessa permanente contradição que a Fifa insiste em ficar.
Esporte não se afasta do direito e o direito tem como base a proteção de direitos humanos. A Declaração Universal de Direitos Humanos, tratados internacionais e os próprios regramentos internos da Fifa reforçam esse compromisso inegociável.
Basta dar uma olhada no estatuto da entidade, a “constituição” do movimento privado do futebol.
No art 4. 2, a entidade se declara neutra em matéria política e religiosa (tentando proteger a utopia da neutralidade esportiva). Mas complementa escrevendo que exceções se darão em casos que dizerem respeito aos objetivos estatutários da Fifa.
Um pouquinho antes, o artigo 3 do estatuto diz que a Fifa protege direitos humanos.
A entidade traz ainda a Política de Direitos Humanos apresentada em 2017 e um novo Código Disciplinar que se tornou mais rigoroso no combate ao preconceito.
Mudanças vieram depois de escândalo
Depois do Fifagate – escândalo de corrupção que derrubou a cúpula da entidade – a FIFA criou uma agenda positiva e estabeleceu expressamente compromisso de se articular construtivamente com os Estados para sustentar a sua política de direitos humanos.
Um dos avanços significativos foi o de que a observância desses direitos passaria a ser critério para a escolha das sedes dos eventos da entidade. Na escolha da sede da Copa de 2026, critérios de compliance e de direitos humanos foram colocados como indispensáveis para a escolha do país sede.
No livro “Lex Sportiva e Direitos Humanos: Entrelaçamentos Transconstitucionais e Aprendizados Recíprocos”, Vinícius Calixto explica:
“A escandalização gerada pela deflagração dos esquemas de corrupção aliada aos problemas envolvendo violações de direitos humanos, com destaque para a situação dos trabalhadores migrantes no Catar, e a necessidade de retomar a credibilidade da instituição fizeram com que a FIFA tomasse medidas para retomar a sua credibilidade, buscando promover maior democracia, transparência e accountability, e mudando sua postura frente à proteção e promoção de direitos humanos”.
A partir dessa nova política, a organização mandava um recado de que exigiria que as revisões de direitos humanos fizessem parte do processo de licitação de seus eventos.
E agora?
O que se vê na prática é que a associação com países que violam direitos humanos segue forte, como na escolha da Arábia Saudita como sede do Mundial de Clubes. Se isso não é um crime, está claro que é uma agressão da FIFA a própria política de direitos humanos.
Como fica o Estatuto?
Como fica a política de 2017?
Como ficam as cláusulas que obrigam país sede de Copa a seguir os princípios orientadores da ONU sobre empresas e direitos humanos e a desenvolver estratégias nessa proteção?
O que já se sabe é que fica cada vez mais difícil para a entidade convencer a opinião pública de que realmente está comprometida com sua política.
De novo é importante lembrar: a autorregulação não pode ser só propaganda institucional, precisa ser guia concreto de conduta.
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