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Por que Rayssa Leal (Fadinha) não trabalha? Skatista pode ser um trabalhador?

A partir do art. 217, da CF/88, art. 1°, caput, § § 1° e 2°, art. 3°, III, § 1°, I e II, da Lei n. 9.615/98 (Lei Pelé), o ordenamento jurídico brasileiro regulamenta a prática desportiva, em que se classifica de maneira geral desporto formal (de rendimento ou alto rendimento) e não formal.

O desporto formal (de rendimento ou alto rendimento) é praticado seguindo as normas nacionais, internacionais e regras editadas pelas entidades desportivas internacionais sobre a respectiva modalidade. Já o desporto não formal é caracterizado pela liberdade lúdica de seus praticantes. Nesta classificação geral se enquadram como exemplos de desporto formal: a prática desportiva profissional, as competições de categorias de bases e a prática de alguns desportos olímpicos considerados não profissionais. São exemplos de desporto não formal: a confraternização de amigos em clubes através da prática de alguma modalidade esportiva.

Por outro lado, o desporto formal (de rendimento ou alto rendimento) ainda se subdivide em profissional e não profissional. É exemplo no Brasil de prática desportiva profissional: a prática do futebol masculino e feminino em que os jogadores detêm remuneração pactuada em contrato formal de trabalho com a entidade de prática desportiva (a configuração da prática profissional no vôlei, basquete, futsal, outras modalidades, é divergência na doutrina e na jurisprudência). A prática desportiva de rendimento não profissional se evidencia no treinamento para participação em competições com a finalidade de obter resultado, podendo existir incentivos materiais e de patrocínios aos atletas competidores – sem contrato de trabalho desportivo.

A atleta Rayssa Leal (Fadinha) pratica a modalidade desportiva do skate de maneira formal (rendimento) em caráter não profissional, ou seja, com escopo de atingir resultados nos treinos e competições, mas sem a constituição de vínculo trabalhista em contra formal de trabalho.

Portanto, é uma possibilidade de participação desportiva existente em nosso ordenamento sem existir relação de trabalho. De longe significa que é um estímulo à prática trabalhista com 13 anos de idade, pois relembre-se que na atividade artística também se permite essa exceção, desde as participações de bebês até a dos artistas mirins.

Em outra dimensão, conforme já escrevemos nesta coluna do Lei em Campo, que homenageia o Mestre “Álvaro Melo Filho”, não significa que não possa existir relação de trabalho na prática do skate[1] e muito menos que se deva reduzir a idade para trabalhar prevista no art. 7°, XXXIII, da CF/88, norma seguidora de parâmetros internacionais estabelecidos na Convenção n. 138 da Organização Internacional do Trabalho, sendo o Brasil um de seus membros fundadores.

Em notícia impactante do dia 03 de março de 2021[2]: a Confederação Brasileira de Skate (CBSk) comemora o seu 22° aniversário de fundação e ao mesmo tempo o reconhecimento do trabalho dos skatistas na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO, código 3771-05, Atleta de skate)[3].

A CBSk informou ainda de maneira destacada que desde o dia 25 de fevereiro de 2021 os skatistas podem constituir vínculo empregatício, registrado na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS), gerando todos os direitos trabalhistas e previdenciários de um emprego.[4]

O reconhecimento da prática de skate competitivo como trabalho já era uma reivindicação da referida Confederação, que requereu ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) a inserção de sua atividade no rol de ocupações da CBO desde outubro de 2020.[5]

A respeito da possibilidade de ocorrência de trabalho na prática do skate, o que não se constitui o caso da Rayssa Leal (Fadinha) e outros atletas em circunstâncias semelhantes, resume-se a reproduzir a coluna referenciada acima para recordar aos nobres leitores.

Muito se confunde a existência de trabalho, ofício, ocupação, profissão com a capacidade de geração de lucro da atividade envolvida na vinculação laboral ou autossustentação financeira/econômica dos sujeitos da relação trabalhista.

A Constituição da República Federativa do Brasil não impõe um rol taxativo de espécies de trabalho/profissão, ao contrário é aberta para qualquer tipo de atividade humana que se possa caracterizar como trabalho, podendo até mesmo perfazer os elementos fático-jurídicos da relação de emprego (suporte nos próprios arts. 1°, IV, 5°, XIII, 6°, 7°, 170, VIII, 193, caput, 217, caput e III, da CRFB/88), que fundamentam a existência jurídica constitucional do trabalho desportivo. Rememora João Leal Amado, “Não existe, na verdade, um numerus clausus de atividades laborais. E também não existe qualquer antagonismo insuperável entre jogo e trabalho, entre desporto e profissão”.[6]

Perante à ordem jurídica brasileira, a relação de trabalho lato sensu ou stricto sensu pode se estabelecer entre um trabalhador qualquer e uma entidade sem fins econômicos (Clubes Sociais, certas Instituições de Ensino Superior, etc.), entes desprovidas de personalidade jurídica (condomínio edilício, massa falida, espólio, etc.) ou mesmo entidades beneficentes (ONGs, alguns Hospitais, etc.), basta que haja entre os sujeitos da vinculação jurídica a implementação de todas as características da relação de emprego (arts. 2°, §1°, da CLT), tradicional contrato de trabalho tácito (art. 442, caput, da CLT), ou ainda, o enlace do contrato de trabalho sem vínculo empregatício, arregimentado na indigitada descrição do novo art. 442-B da CLT.

A propósito, o microssistema normativo especial do trabalho previsto nos arts. 28 e 28-A da Lei Pelé também percorre o mesmo sentido da norma geral acima retratada, regulamentando o contrato especial de trabalho desportivo (este gerador do vínculo empregatício) e a contratação do atleta autônomo (relação de trabalho desportivo lato sensu).

Em nenhuma base jurídica do ordenamento brasileiro se exige uma atividade econômica lucrativa como condição para a existência (surgimento) da relação de trabalho com ou sem vínculo empregatício. Inexiste a obrigatoriedade de que os atletas tirem o sustento de suas vidas exclusivamente do exercício desportivo ou que o exerça como atividade primária de sustentação financeira/econômica para que seja considerado espécie de trabalho (profissão). Assinala João Leal Amado: “Parece-nos evidente que uma pessoa pode ter várias profissões; sendo uma delas a principal, a outra ou outras serão secundárias, mas nem por isso deixam de ser profissões”.[7]

Por outro lado, a modalidade skate ser classificada como exercício competitivo não profissional também não é condição para que o skatista seja ou não considerado trabalhador, pois há muito tempo a doutrina especializada predominante entende que a identificação do profissionalismo se dá em relação ao atleta e não à classificação técnica da modalidade esportiva praticada. Sustenta Álvaro Melo Filho[8]:

Andou certo o legislador ao deixar a latere o desporto para centrar-se no atleta, pois o profissional ou não-profissional não é o desporto, e sim o praticante ou a sua organização.

Acresça-se que a remuneração do atleta profissional deve resultar da celebração de contrato de trabalho desportivo, pouco importando se à modalidade desportiva é conferido, ou não, um caráter profissional.

Abona João Leal Amado[9]:

Em todo o caso, uma coisa é certa: do ponto de vista jurídico, a etiqueta de «amador» não basta para evitar a aplicabilidade da legislação do trabalho a um praticante desportivo que seja, na verdade, um profissional, rectius, um trabalhador, sob pena de o direito laboral desportivo ficar como que refém da regulamentação federativa, situação esta a todos os títulos inaceitável.

A despeito do momento vivido no Brasil, em que há tendências jurisprudenciais de desconsiderar vínculos empregatícios entre trabalhadores e plataformas digitais (vide recente Processo n. TST-RR-10555-54.2019.5.03.0179, Acórdão 4ª turma, Rel. Min. Ives Gandra da Silva Martins filho), é bom que se rememore a notícia destacada no início deste texto: a própria Confederação Brasileira de Skate (CBSk) foi quem requereu ao Ministério do Trabalho e Emprego a inclusão da atividade de atleta de skate na lista codificada da Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), parecendo ser uma reivindicação da sociedade esportiva da modalidade em tela, sem nenhuma resistência daqueles sujeitos que poderiam figurar como empregadores da relação de emprego em pauta.

Ademais, sobre a questão de quem poderia ser empregador desta relação trabalhista desportiva, relembre-se que poderia ser tanto as empresas patrocinadoras que teriam o interesse de divulgar as suas marcas, se assim optassem, ou as próprias entidades promotoras das competições de skate, em analogia ao que ocorre no trabalho dos peões de rodeio, que são qualificados como atleta profissionais em nosso ordenamento jurídico (arts. 1° e 2° da Lei n. 10.220/2001).

Tal perspectiva, não seria nada absurdo, já que a prática competitiva de skate é predominantemente realizada em modalidade individual, podendo ser empregadores: entidades promotoras das competições (similar aos empregadores dos peões de rodeio), ligas, entidades federativas, clubes e até patrocinadores.

Entretanto, a opção das entidades desportivas ou patrocinadoras em estabelecer uma relação de vínculo empregatício com os atletas skatistas nos moldes dos arts. 2°, 3° e 442 da CLT não afasta a alternativa de contratação atlética autônoma (trabalho lato sensu) edificada no art. 28-A da Lei Pelé, desde que realmente constitua os seus caracteres próprios. Parece suportar este entendimento, Domingos Sávio Zainaghi[10] ao expor sobre o atleta de futebol sem contrato escrito e registrado:

O princípio protetor do Direito do Trabalho e o da Primazia da Realidade impedem que se adote a tese de que, se não formalizados por escrito, o contrato não exista.

Imaginemos que um clube contrate verbalmente um atleta para que este permaneça durante um semestre entre seus atletas formalmente contratados e com contratos registrados. Esse atleta participa de treinos, concentra-se com o grupo, viaja e acompanha todas as partidas, e até mesmo recebe um valor financeiro mensalmente. Como afirmamos, para efeitos desportivos, não existe o vínculo federativo, não podendo tal atleta participar de competições oficiais. Por outro lado, vejamos, existe a pessoalidade, a não eventualidade, a dependência em face do empregador e o recebimento de salários. Enfim, estão preenchidos todos os elementos previstos na CLT para a existência de um contrato de trabalho.

O fato de não existir um contrato escrito não descaracteriza a relação de emprego.

Em síntese, skate e trabalho podem entrar em perfeita harmonia, skatista pode ser trabalhador e a atividade competitiva da modalidade desportiva skate pode ser identificada como trabalho com vínculo empregatício, anotado em CTPS, ou trabalho autônomo, a depender da realidade constitutiva entre os sujeitos desta relação jurídica. A única exceção se reporta, exatamente, nos casos como da skatista Rayssa Leal (Fadinha), explicado no início deste texto.

……….

[1] RAMOS, Rafael Teixeira. Skate e trabalho: skatista pode ser trabalhador, o exercício competitivo de skate pode ser trabalho? Coluna Álvaro Melo Filho. Lei em Campo. Disponível em: <https://leiemcampo.com.br/skate-e-trabalho-skatista-pode-ser-trabalhador-o-exercicio-competitivo-de-skate-pode-ser-um-trabalho/>. Acesso em: 01 jan. 2021.

[2] CBSK Confederação Brasileira de Skate. CBSk celebra 22° aniversário em ano histórico da entrada do atleta de skate no rol de profissões do Brasil. Disponível em: <http://www.cbsk.com.br/noticias/noticias/cbsk-celebra-22-aniversario-em-ano-historico-da-entrada-do-atleta-de-skate-no-rol-de-profissoes-do-brasil/1966>. Acesso em: 05 mar. 2021.

[3] Emprega Brasil Ministério do Trabalho. Classificação Brasileira de Ocupações CBO Ministério do Trabalho. Disponível em: <http://www.mtecbo.gov.br/cbosite/pages/home.jsf>. Acesso em: 05 mar. 2021.

[4] CBSK Confederação Brasileira de Skate. CBSk celebra 22° aniversário em ano histórico da entrada do atleta de skate no rol de profissões do Brasil. Disponível em: <http://www.cbsk.com.br/noticias/noticias/cbsk-celebra-22-aniversario-em-ano-historico-da-entrada-do-atleta-de-skate-no-rol-de-profissoes-do-brasil/1966>. Acesso em: 05 mar. 2021.

[5] CBSK Confederação Brasileira de Skate. CBSk celebra 22° aniversário em ano histórico da entrada do atleta de skate no rol de profissões do Brasil. Disponível em: <http://www.cbsk.com.br/noticias/noticias/cbsk-celebra-22-aniversario-em-ano-historico-da-entrada-do-atleta-de-skate-no-rol-de-profissoes-do-brasil/1966>. Acesso em: 05 mar. 2021.

[6] AMADO, João Leal. Contrato de trabalho desportivo: Lei n.°54/2017, de 14 de julho – anotada. Coimbra: Almedina, 2018, p. 13. (grifos nossos).

[7] Id. Ibid., 2018, p. 18. (grifos nossos).

[8] MELO FILHO, Álvaro. Novo regime jurídico do desporto: comentários à Lei 9.615 e suas alterações. Brasília: Brasília Jurídica, 2001, p. 42, 117. (grifos nossos).

[9] AMADO, João Leal., op. cit., 2018, p. 23.

[10] ZAINAGHI, Domingos Sávio. Os atletas profissionais de futebol no direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2018, p. 47.

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