Por Igor Serrano
“A responsabilidade de fazer esse mundo um lugar melhor é nossa!” [1]
Dez de dezembro de mil novecentos e quarenta e oito: durante Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, foi apresentada ao mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), documento histórico com trinta artigos enumerando todos os direitos básicos que cada pessoa deve ter “sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição” [2].
A ONU havia sido recém-criada, no contexto pós-segunda guerra mundial e a Declaração idealizada como um norte para a defesa da paz mundial e da tentativa de evitar retrocessos. Não demorou muito para que a entidade enxergasse o esporte em geral como importante aliado na promoção desses valores. Segundo o Dicionário Michaelis, entende-se por esporte: “1 Prática metódica de exercícios físicos visando o lazer e o condicionamento do corpo e da saúde; desporte, desporto; 2 O conjunto das atividades físicas ou de jogos que exigem habilidade, que obedecem regras específicas e que são praticados individualmente ou em equipe; desporte, desporto” [3].
Não há um marco temporal exato de quando foi realizada a primeira atividade considerada como esporte. O futebol, por exemplo, segundo apontam historiadores, apesar de ter sido “criado” em 1863, já era praticado por diferentes locais e épocas pelo mundo (como Grécia, Roma, China do início do século II e até mesmo durante a Idade Média na França e na Itália) em rituais que muito se assemelhavam ao jogo de pontapés na bola. Sabemos, porém, que a primeira edição de um festival esportivo (Os Jogos da Antiguidade) ocorreu em Olímpia, na Grécia em 760 a.C.
Voltando aos tempos modernos, muitas décadas se passaram desde a criação da ONU e da DUDH e, nos últimos anos, com a evolução da gestão desportiva no Brasil e no mundo impulsionada pela globalização e a mercantilização cada vez maior das atividades esportivas, o termo compliance ganhou muito destaque, passando a fazer parte do vocabulário de praticamente todos dirigentes e entidades e gerando uma espécie de repetição em mantra, sendo ignorado, entretanto, sua essência.
Se por um lado, toda e qualquer gestão de qualquer área que pretenda atingir a excelência e eficiência, deve atuar em conformidade com as regras e legislações pertinentes, almejando integridade e boas práticas, no esporte no Brasil, a tendência, a priori, é por buscar apenas cercar-se de observância de normas com ligação direta ao tema, apenas aquilo que é “exigido”, ignorando-se muitos outros aspectos, com importância e relevância tantas ou até maiores, como, por exemplo, os direitos humanos. Nesse sentido, destacam Ana Paula Terra e Fernando Monfardini:
“Em seus 75 anos de existência, a ONU trouxe ao mundo jurídico dezenas de resoluções (decisões positivadas em normas válidas para todos os seus membros) que servem como base fundante do Direito Internacional Esportivo.” [4]
“Muitos ligam o Compliance ao mero cumprimento de obrigações legais e procedimentos, ignorando o fato que um programa de integridade efetivo busca muito mais que isso. Em termos de efetividade, a busca é de não precisar mais fazer apenas a obrigação jurídica, mas, sim, promover ética, a igualdade, boas práticas e respeito. E isso se refere às interações humanas e ao respeito às diferenças, bem como a responsabilidade ambiental, social e etc”. [5]
Some-se a isso, no caso brasileiro, a eterna contradição de grande parte das entidades desportivas, que ora agarram-se ao máximo na defesa de suas autonomias desportivas garantidas pela Constituição, enquanto associações privadas de direito, ora, quando convém, apresentam-se enquanto propagadores de função social, por conta do esporte.
A tendência global de mercantilização esportiva, maximização de lucros, busca incessante de aumento de patrocínios e receitas em geral, têm provocado a seguinte situação: os números e planilhas acabam por ficar em sobreposição ao aspecto primordial, o humano. Curioso para dizer o mínimo, afinal, pois, mesmo nos e-sports, que contam com o apoio de máquinas (computadores e consoles) para a prática, o elemento humano ainda não é prescindível.
Não por acaso, atletas, de modalidades diversas [6], estão cada vez mais se posicionando sobre o esgotamento mental e a necessidade de atenção a essa área da saúde. Um ambiente com cobranças e exigências no cenário apresentado até aqui, como se máquinas estivessem impulsionando os números, ignora, por óbvio, o bem-estar humano, afinal, máquinas não se queixam, não possuem emoções, apenas deixam de funcionar, precisam de reparo de peças, substituição por outras máquinas, para que a engrenagem/a produção industrial não pare de funcionar e produzir/lucrar.
Não levar em consideração as particularidades de cada componente de uma equipe esportiva ou atleta solo, enquanto indivíduo, acaba por ser não somente maléfico do ponto de vista da saúde destes e do ambiente, mas também um erro de estratégia. Um(a) esportista vivendo a plenitude de seu bem-estar mental e físico, certamente tem potencial de performance maior do que aqueles que não estejam.
Eu acredito ser possível uma harmonia entre todos os fatores. “Você pode até dizer que sou um sonhador, mas não estou sozinho” [7].
Nos siga nas redes sociais: @leiemcampo
Igor Serrano é advogado, pós-graduado em Direito Desportivo e autor do livro “O racismo no futebol brasileiro”
[1] RAPINOE, Megan.
Disponível em: https://www.espn.com.br/espnw/artigo/_/id/5823453/rapinoe-brilha-na-festa-do-titulo-dos-eua-com-discurso-inspirador-temos-que-amar-mais-e-odiar-menos.
Acesso em novembro/2021.
[2] Organização das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos.
Acesso em novembro/2021.
[3] Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/esporte.
[4] TERRA, Ana Paula. A ONU como parceira do esporte. Lei em Campo, novembro de 2020. Disponível em: https://leiemcampo.com.br/a-onu-como-parceira-do-esporte/. Acesso em novembro de 2021.
[5] MONFARDINI, Fernando. Compliance no futebol: a tática da democratização, transparência e controles internos. Rio de Janeiro: Drible de Letra, 2018. p. 127.
[6]https://www.dw.com/pt-br/caso-simone-biles-p%C3%B5e-em-foco-sa%C3%BAde-mental-de-atletas/a-58690821; https://www.terra.com.br/esportes/futebol/fifa-exibe-preocupacao-com-saude-mental-apos-alerta-de-biles,8589ccae1c0335c24fe563b9836ba4ceyk7yvodq.html; https://www.terra.com.br/noticias/coronavirus/michael-phelps-pede-que-atletas-cuidem-da-saude-mental,7667cd30993622867b681ff22d371676d2plvz6s.html
[7] LENNON, John. Imagine (1971).