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Por um Kaepernick brasileiro

“Eu não vou me levantar e mostrar orgulho pela bandeira de um país que oprime os negros e pessoas de cor. Para mim, isso é mais importante que futebol e seria egoísta da minha parte virar a cara. Há corpos na rua enquanto os responsáveis recebem licença remunerada e ficam impunes por assassinatos”
(Colin Kaepernick, em declaração de 2016)

Na última semana, os advogados dos atletas Colin Kaepernick e Eric Reid anunciaram a assinatura de um acordo confidencial para encerrar a ação judicial que os atletas moviam contra a NFL, a principal liga de futebol americano dos Estados Unidos. Kaepernick e Reid processaram a NFL sob o argumento de que a liga havia promovido um boicote dos times para que não os contratassem, como retaliação por conta dos protestos iniciados por Kaepernick em 2016.

A história de Kaepernick poderia ser contada por meio de seus feitos esportivos. Com notável carreira no futebol americano universitário, o quarterback atingiu o auge esportivo ao liderar o San Francisco 49ers no Super Bowl de 2013.

Kaepernick, porém, é um daqueles atletas que romperam as fronteiras do esporte. Em 2016, como forma de chamar a atenção para a violência policial direcionada à população negra nos Estados Unidos, ele iniciou uma série de protestos, ajoelhando-se e recusando-se a cantar o hino norte-americano antes das partidas da NFL.

No dia 5 de julho daquele ano, Alton Sterling, um homem negro de 37 anos, foi baleado várias vezes após ser derrubado por dois policiais brancos em Louisiana. Toda a ação foi filmada, e o vídeo foi assistido por milhões de pessoas, inclusive por Kaepernick, que expressou a sua indignação.

No dia seguinte, Philando Castile, homem negro de 32 anos, foi parado por um policial enquanto dirigia acompanhado de sua namorada e da filha dela, de apenas 4 anos. Após ser solicitada a sua carteira de motorista, Castile informou calmamente ao policial que tinha licença para portar arma e que havia uma arma no carro. Na sequência o oficial de polícia disparou sete vezes contra Castile, vitimando-o fatalmente.

Os assassinatos de Sterling e Castile, em 2016, expuseram ainda mais a violência policial contra a população negra e deram origem a uma onda de protestos em várias cidades dos Estados Unidos. Após os homicídios que vitimaram Michael Brown na cidade de Ferguson e Eric Garner em Nova York, ambos em 2014, a indignação parecia ter chegado a seu ápice em 2016.

Para Colin Kaepernick, algo precisava ser feito. Ele deixava claros, para a imprensa, os motivos de seu protesto, e mais atletas foram se juntando à causa. Kaepernick havia se aproximado de movimentos negros, especialmente do movimento Black Lives Matter.

O ato de Kaepernick gerou maior repercussão quando o presidente Donald Trump declarou que os atletas que estavam se ajoelhando durante o hino norte-americano eram “filhos da puta que mereciam ser demitidos pelos seus times”. A declaração de Trump inflamou ainda mais a comunidade esportiva, e o final de semana seguinte ficou marcado por protestos durante o hino nacional envolvendo dezenas de jogadores, treinadores, gerentes e donos de equipes.

Além do amplo movimento que iniciou, Kaepernick também doou mais de 1 milhão de dólares para organizações de justiça social dedicadas ao combate da violência policial, encarceramento massivo, fome infantil e desabrigados.

Além disso, a NFL formalizou um acordo com um grupo de 40 atletas, no final de 2017, para doar o valor de 89 milhões de dólares a organizações que atuam pela reforma do sistema criminal, pela responsabilização policial e por ações de educação afro-americana nas escolas. O fato é que esse acordo não existiria se não fosse a luta de Kaepernick.

Agora, Kaepernick é novamente alvo de críticas. Dessa vez por ter chegado a um acordo financeiro com a NFL pelo boicote sofrido e pelos anos sem poder atuar. Mas o fato é que Kaepernick já venceu. O movimento que ele começou em 2016 reverbera até hoje.

Recentemente, um garoto branco de 10 anos da Carolina do Norte ajoelhou-se durante o Juramento à Bandeira. Segundo ele, o ato foi contra a discriminação racial, que “é basicamente quando pessoas são más com as outras pessoas de cores diferentes”¹.

Enquanto Kaepernick liderou um amplo movimento de atletas que se insurgiram diante da violência contra a população negra nos Estados Unidos, nenhum atleta no Brasil assumiu esse papel, e o brutal assassinato de Pedro Gonzaga é mais um episódio que escancara esse silêncio.

Pedro foi imobilizado e asfixiado por um segurança dentro de um supermercado no Rio de Janeiro, diante de sua própria mãe. Um vídeo da ação mostra pessoas tentando convencer o segurança a soltar o jovem, que já estava desfalecendo. O caso é semelhante ao assassinato de Eric Garner, sufocado por um oficial de polícia em Nova York e também registrado em vídeo.

Para qualquer pessoa que se reconheça e reconheça os outros como sujeito de dignidade e de direitos, é insuportável assistir às imagens do assassinato de Pedro Gonzaga. É insuportável não termos respostas sobre o desaparecimento de Amarildo. É insuportável a morosidade do Estado quanto à responsabilização pela morte de Marielle.

A construção de uma sociedade antirracista deve ser responsabilidade de todos e todas. Como defendido por Denise Carreira, deve fazer parte da luta antirracista também o sujeito branco que se desenvolva com base na compreensão de sua incompletude e na alteridade capaz de compreender a produção e a manutenção de privilégios brancos e a magnitude do sofrimento gerado à população negra e indígena no nosso país².

Ao passo que devemos afirmar o lugar dos movimentos negros e indígenas como protagonistas históricos da luta antirracista, é fundamental convocar pessoas brancas e instituições a assumirem responsabilidades como sujeitos da transformação das relações raciais.

Em uma época em que as grandes estrelas esportivas conseguem atrair não só a tradicional cobertura midiática, mas também milhões de seguidores por meio do contato direto das redes sociais, o impacto de posicionamentos contundentes é capaz de promover reflexões coletivas que possibilitem transformações efetivas.

O futebol brasileiro, que já teve em sua história figuras questionadoras como Afonsinho, Reinaldo e Paulo César Caju, parece padecer de um vácuo desde a partida do eterno Doutor Sócrates, que faria 65 anos nessa última semana e que, como bem lembrado por Juca Kfouri³, estaria indignado com o Brasil de hoje como era indignado com o Brasil de ontem.

Hoje não há, dentre os grandes protagonistas atuais do nosso esporte, especialmente no futebol, quem tenha assumido esse papel de sujeito crítico e ativo capaz de se levantar e atravessar a ilusória fronteira que separa o esporte das lutas sociais.

Que falta nos faz um Kaepernick.

……….
¹ http://theundefeated.com/features/colin-kaepernick-doesnt-need-the-nfl-to-continue-his-fight/
² CARREIRA, Denise. O Lugar dos Sujeitos Brancos na Luta Antirracista. Dossiê Sur sobre Raça e Direitos Humanos. Dez/2018.
³ https://blogdojuca.uol.com.br/2019/02/os-65-anos-do-doutor-socrates/

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