Um dos casos mais interessantes dos últimos tempos continua em aberto. Após o julgamento no Pleno do TJD, que deu razão ao Villa Nova e acolheu o pedido de prescrição que resultou na manutenção do clube na primeira divisão estadual, o caso agora vai para o STJD. Tecnicamente é um caso bastante complexo, uma vez que envolve uma série de conceitos sensíveis e ainda não estabelecidos no âmbito do direito desportivo.
O primeiro ponto que precisa ser observado é a continuidade delitiva. Tendo a pena iniciado no dia 24 de janeiro de 2019, ela só teria sido encerrada com o cumprimento da segunda partida de suspensão, no dia 16 de fevereiro deste ano. Inicialmente, temos de destacar que não existe crime continuado, da mesma forma que não existe infração disciplinar continuada.
A continuidade delitiva é, nas palavras do ministro Carlos Britto, “uma criação puramente jurídica”[1], gerando um benefício aos que cometem delitos nas circunstâncias previstas pela legislação. A mesma visão é trazida pela ministra Ellen Gracie, que entende que o “Direito Penal brasileiro encampou a teoria da ficção jurídica para justificar a natureza do crime continuado”[2], sendo parte de uma política criminal adotada pelo ordenamento jurídico nacional que traz benefícios a quem pratica as infrações que atendem aos critérios definidos em lei.
Cabe então observar o que dispõe a lei penal sobre a continuidade delitiva. O artigo 71 do Código Penal Brasileiro traz o seguinte:
“Quando o agente, mediante mais de uma ação ou omissão, pratica dois ou mais crimes da mesma espécie e, pelas condições de tempo, lugar, maneira de execução e outras semelhantes, devem os subseqüentes ser havidos como continuação do primeiro, aplica-se-lhe a pena de um só dos crimes, se idênticas, ou a mais grave, se diversas, aumentada, em qualquer caso, de um sexto a dois terços.”
Como se observa, a lei penal brasileira delimita claramente os requisitos para a configuração da continuidade delitiva, que destacamos: 1 – prática de mais de uma ação ou omissão delitiva; 2 – previsão criminalizando as ações ou omissões; 3 – que os delitos sejam da mesma espécie; 4 – que as condições de tempo, lugar e modo indiquem que as ações ou omissões subsequentes são faticamente continuidades da primeira. Destaca também como será calculada a pena aplicada aos casos de continuidade delitiva, destacando que a pena maior absorverá as menores e poderá ser aumentada de um sexto a dois terços, ressalvados os casos destacados no parágrafo único do artigo.
Cabe destacar, nas palavras do ministro Menezes Direito[3], que “não basta que haja similitude entre as condições objetivas. É necessário que entre essas condições haja uma ligação, um liame, de tal modo a evidenciar-se, de plano, terem sido os crimes subsequentes continuação do primeiro”.
Dessa forma, temos extremamente bem estruturada a questão da continuidade delitiva no âmbito do Direito Penal brasileiro. No Direito Desportivo, no entanto, a questão é significativamente mais nebulosa – ainda que exista previsão expressa no código sobre a existência da continuidade delitiva, especificamente no artigo 165-A, que dispõe sobre a prescrição, no § 6º, alínea c. Isso é, o CBJD abre espaço para que a mesma política de punição adotada pela normatização penal seja utilizada pelos julgadores no âmbito da Justiça Desportiva.
Sem a existência de normatização específica sobre a continuidade nos delitos disciplinares desportivos, cabe aos operadores do Direito Desportivo o socorro ao artigo 283 do CBJD. Esse artigo permite que, em caso de omissão, os operadores busquem socorro na legislação não desportiva e, também, em analogias.
Dessa forma, com o reconhecimento da aplicabilidade da continuidade delitiva ao Direito Desportivo, cabe compreender se uma situação é ou não enquadrável como infração continuada. No caso específico, há um complicador: para entender se é possível a continuidade, é indispensável antes compreendermos as questões que envolvem a infração prevista no artigo 214 e o cumprimento de penas disciplinares desportivas.
O artigo 214 prevê que serão puníveis os times que fizerem constar na súmula atletas que não tenham condições para participar de uma partida. Disso se pode extrair uma informação fundamental: a simples inclusão na súmula configura participação na partida, ainda que o atleta não entre em campo efetivamente.
Sendo assim, é importante observar se o atleta em questão tinha condições de participar das partidas das quais participou. O cumprimento de penas disciplinares desportivas, especificamente as de suspensão, é definido pelo artigo 171 do CBJD, que segue abaixo:
“Art. 171. A suspensão por partida, prova ou equivalente será cumprida na mesma competição, torneio ou campeonato em que se verificou a infração.
1º Quando a suspensão não puder ser cumprida na mesma competição, campeonato ou torneio em que se verificou a infração, deverá ser cumprida na partida, prova ou equivalente subsequente de competição, campeonato ou torneio realizado pela mesma entidade de administração ou, desde que requerido pelo punido e a critério do Presidente do órgão judicante, na forma de medida de interesse social.” (grifo nosso)
O atleta foi expulso de jogo em partida válida pelo Campeonato Mineiro Sub-20 contra o América de Teófilo Otoni, no dia 25 de julho de 2018, por reclamar acintosamente no banco de reservas. Julgado pelo TJD, foi punido com suspensão de quatro jogos, com base no artigo 258 do CBJD. A primeira das partidas de suspensão foi cumprida no jogo imediatamente seguinte (suspensão automática), mas restaram pendentes outras três partidas de suspensão. Promovido à equipe principal em 2019, o atleta cumpriu a quarta partida de suspensão na primeira rodada do Campeonato Mineiro de 2019, em jogo contra o Tupynambás. Segundo o artigo 171 do CBJD, o atleta deveria cumprir suspensão nas duas partidas subsequentes, realizadas nos dias 24 e 27 de janeiro de 2019.
O que se observa, no entanto, é que o nome do atleta constava na súmula de tais partidas indicando que ele delas participou. Destacamos novamente que a participação nas partidas independe da entrada em campo, sendo suficiente a inclusão do nome na súmula. Dessa forma, fica evidente que o atleta deixou de cumprir pena imposta pela Justiça Desportiva e, portanto, infringiu o disposto no artigo 223 do CBJD, cujo texto segue transcrito a seguir.
“Art. 223. Deixar de cumprir ou retardar o cumprimento de decisão, resolução, transação disciplinar desportiva ou determinação da Justiça Desportiva. PENA: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).
Parágrafo único. Quando o infrator for pessoa natural, a pena será de suspensão automática até que se cumpra a decisão, resolução ou determinação, além de suspensão por noventa a trezentos e sessenta dias e, na reincidência, eliminação.” (Grifo nosso)
Nesse sentido, o artigo 223 do CBJD é claro ao destacar que, além da possibilidade de punição por até 360 dias, o atleta ficará automaticamente suspenso até o cumprimento total da decisão. A suspensão automática, diferentemente da aplicação de pena, tem efetividade imediata, independendo de denúncia, como forma de garantir o cumprimento da pena anteriormente atribuída.
Essa norma está alinhada com a origem do direito ocidental, na Grécia, quando as antigas normas orientais passaram a ser adaptadas para a realidade do Ocidente, influenciando amplamente os ordenamentos jurídicos modernos. A prisão era um instrumento comumente utilizado no direito grego como forma de garantia de executoriedade de penas ou mesmo de pagamento de dívidas. Já para Tomás de Aquino[4], a punição deriva da própria lei, sendo essa uma forma de garantir sua efetividade e gerar temor por seu descumprimento.
Vincular o cumprimento de uma pena já imposta pela Justiça Desportiva ao oferecimento de nova denúncia retiraria toda a força executória e punitiva das normas desportivas. É nesse sentido que o artigo 223 prevê expressamente que a suspensão até o cumprimento da pena já imposta será automático.
A suspensão do atleta perdurou até o dia 16 de fevereiro, quando ele ficou de fora da quarta partida, cumprindo assim a pena imposta inicialmente. Até tal data, partida após partida, clube e atleta continuaram infringindo as normas desportivas.
Ainda que se entenda que formalmente o disposto no artigo 165-A, § 6º, c, não é suficiente para a configuração da inclusão do benefício da continuidade delitiva no ordenamento jusdesportivo nacional, não há como negar que, em todas as partidas em que o atleta constou na súmula até o dia 16 de fevereiro de 2019, tanto ele como o clube cometeram infrações. A diferença estará na forma como será calculada a pena, bem como na prescrição de parte das penas, caso não se entenda pela continuidade da infração disciplinar.
Em um cenário no qual a continuidade da conduta é reconhecida, a pena máxima aplicável ao caso é de 5 pontos, além da retirada dos pontos conquistados nas partidas. Já caso não seja reconhecida a continuidade, a pena ao clube pode chegar aos 6 pontos, tendo em vista que deverá ser reconhecida a prescrição no que diz respeito aos dois primeiros jogos disputados pelo atleta, em razão da inércia da Procuradoria por prazo superior a 60 dias da ocorrência de tais infrações.
Em termos práticos, não haverá diferença no reconhecimento ou não da continuidade delitiva, uma vez que, qualquer que seja o cenário, resultará na perda de 9 pontos pela equipe do Villa Nova, que seria com isso rebaixada. Em termos teóricos, no entanto, a decisão do STJD será extremamente relevante, especialmente considerando a falha do CBJD no tocante à efetiva descrição da aplicabilidade da ideia de continuidade delitiva no âmbito disciplinar desportivo.
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Referências
[1] HC 98647 / RS — RIO GRANDE DO SUL, Relator: Min. Carlos Britto, Julgamento: 13/10/2009, Órgão Julgador: Primeira Turma, STF, Publicação: DJe-218, PUBLIC 20-11-2009
[2] HC 91370 / SP — SÃO PAULO, Relatora: Min. Ellen Gracie, Julgamento: 20/05/2008 Órgão Julgador: Segunda Turma, STF, Publicação: DJe-112 PUBLIC 20-06-2008
[3] RHC 93144 / SP — SÃO PAULO, Relator: Min. Menezes Direito, Julgamento: 18/03/2008 Órgão Julgador: Primeira Turma, STF, Publicação: DJe-083 PUBLIC 09-05-2008
[4] AQUINO, Tomás de. Suma teológica. São Paulo: Loyola, 6. 2001.