Por Higor Maffei Bellini
Voltamos para abordar um tema que, para mim, tem-se tornado cada vez mais importante: a garantia da saúde mental das pessoas, especialmente daquelas envolvidas no desporto, como os seus protagonistas, os atletas. Para o consumidor do produto desportivo, o atleta é alguém que pode sempre ser cobrado, que sempre pode dar mais um pouco e que nunca enfrenta problemas pessoais ou familiares que possam afetar o seu desempenho.
O atleta, ao contrário do que muitos imaginam, não é um super-herói, mas sim “apenas” humano. Por isso, as suas emoções existem e influenciam as suas ações no exercício da sua atividade profissional, no ambiente desportivo, pois o atleta é apenas uma faceta do ser humano, que também assume outros papéis, sendo, por vezes, filho, mãe, irmã, proprietário de um imóvel ou inquilino, como qualquer outra pessoa.
A nossa visão do atleta como alguém imune às dificuldades da vida quotidiana, que não enfrenta problemas pessoais ou familiares, talvez tenha origem no trabalho eficaz das equipas de comunicação que protegem a imagem do atleta como pessoa, expondo apenas lampejos da vida profissional. Ou ainda, nos filmes e textos que destacam passagens de eventos desportivos para enaltecer como um atleta ou uma equipa superaram as adversidades da vida, mesmo que não tenham sido campeões.
No caso brasileiro, essa visão pode derivar do imaginário de que todos os atletas são milionários, recebendo remunerações (considerando salários e benefícios adicionais, como fornecimento de habitação) elevadas e tendo diversos empregados para cuidar das atividades quotidianas, sem conhecer, por exemplo, o preço de um pão na padaria, seja porque o dono não cobra por ser fã do clube, seja porque alguém compra para ele.
Contudo, essa não é a realidade do desporto brasileiro, onde apenas alguns atletas recebem milhões e são facilmente identificáveis, sem necessidade de recorrer a estatísticas. Em muitos casos, os atletas ganham abaixo do valor do salário-mínimo — quando recebem — e vivem em alojamentos coletivos fornecidos pelos clubes, com alimentação incluída como uma forma de elevar a remuneração sem encargos trabalhistas e previdenciários.
Dessa forma, percebe-se que a maioria dos atletas enfrenta os mesmos problemas que os seus adeptos, incluindo o desgaste mental, que pode levar ao esgotamento e, consequentemente, prejudicar o desempenho nas competições.
Assim, a questão da saúde mental do atleta deve ser uma preocupação deste, enquanto ser humano, bem como do seu empregador, em modalidades coletivas, e da sua equipa técnica, no caso de modalidades individuais, em que o atleta muitas vezes atua como empregador do seu treinador, massagista ou fisioterapeuta.
É um erro um superior, seja ele técnico, supervisor ou diretor, levar um atleta além do seu limite mentalmente suportável em treinos, viagens ou até mesmo na sua vida pessoal, sob o argumento de que o está preparando para o ambiente competitivo. Ou ainda tentar moldar o caráter e a personalidade da pessoa que, naquele momento, exerce a função de atleta.
Da mesma forma, é inadequada a atuação de adeptos, sejam eles torcedores comuns ou membros de claques organizadas, que cobram o atleta nos seus dias de folga, quando está com a família, no seu dia de treino ou mesmo após um jogo, chegando por vezes à agressão física ou à ameaça a familiares.
A condição de atleta é transitória na vida de uma pessoa, quando falamos de profissionais que, em média, têm cerca de 15 anos de carreira. Depois disso, voltarão à vida fora do desporto e tentarão garantir uma transição de carreira, já que a maioria precisará continuar a trabalhar noutras áreas, ligadas ou não ao desporto.
Como qualquer outro empregado, não há qualquer justificativa legal para tratar o atleta de forma diferente dos demais trabalhadores do clube. Assim, se o atleta apresentar problemas de saúde mental ou psicológica, deve ser afastado para tratamento.
Um exemplo interessante, vindo da Justiça do Trabalho de São Paulo, ilustra a necessidade de preservação da saúde mental dos empregados, uma vez que o empregador pode ser responsabilizado pelos danos causados à saúde do trabalhador:
Cargo de confiança. Gerente de software. Estabelecimento bancário. Art. 62, II da CLT. Autonomia mitigada pela subordinação estrutural. Reclamante não era a autoridade máxima do setor. Maior responsabilidade, inclusive técnica, dentro da organização. Atribuições que não revelam poderes de mando e gestão, ainda que passíveis de certa limitação conceitual, que lhe permitissem substituir o empregador ou ser senhor(a) de seu tempo na gestão do estabelecimento. Enquadramento no art. 62, II, da CLT não reconhecido. Aplicação do art. 224, § 2º da CLT. Sentença mantida. Doença profissional psíquica. Concausalidade. A conclusão do laudo pericial deve ser analisada à luz da responsabilidade subjetiva. Prova produzida nos autos não indicou a ocorrência de tratamento humilhante, sobrecarga ou cobranças excessivas, exposição vexatória de produtividade, advertências indevidas, enfim, qualquer atitude a ensejar a prática de assédio moral ou tratamento vexatório sobre a pessoa do reclamante a impor ao empregador responsabilidade subjetiva sobre o quadro de saúde mental apresentado à época. Sentença mantida. (TRT da 2ª Região; Processo: 1000555-11.2022.5.02.0046; Data de assinatura: 27-06-2024; Órgão Julgador: Vice-Presidência Judicial – 2ª Turma; Relatora: Luciana Carla Correa Bertocco).
Por vezes, permanecer no ambiente de trabalho, que pode ser a causa do problema, pela cobrança dos adeptos que não querem reconhecer o atleta como humano e empregado, ou pela pressão da direção e da equipa técnica, não permite uma recuperação rápida.
Se um auxiliar de escritório pode ser afastado para tratamento, por que razão o atleta não pode ausentar-se para cuidar da saúde? Em ambos os casos, o contrato de trabalho será suspenso por determinação legal.
É o artigo 476, da Norma Consolidada[1], que prevê, durante o auxílio-doença, o empregado permanece com o seu contrato de trabalho, mas, em licença não remunerada, ou seja, há a suspensão do contrato de trabalho, ele sendo aplicado para o atleta com o seu contrato por prazo determinado, que voltará a correr pelo que faltar ao voltar o atleta do afastamento. Durante a suspensão do contrato laboral, diversos efeitos do contrato de trabalho ficam suspensos, dentre eles o direito potestativo do empregador em rescindi-lo imotivadamente.
Podendo ser esse dispositivo ser aplicado também nos contratos por prazo determinado, como é o caso do atleta profissional, como já decidiu o Tribunal Regional do Trabalho cuidando de caso que não versa sobre atleta, mas, que tem o seu raciocínio valido para esses, vejamos:
Acidente no curso do contrato por prazo determinado. Não se trata de reconhecimento de estabilidade provisória pelo prazo mínimo de doze meses a contar da alta previdenciária, com fulcro no artigo 118 da Lei n 8.213/91, como alega a reclamada. Mas sim de suspensão do contrato de trabalho em razão do benefício previdenciário, nos termos do art.63 daquela mesma lei. Nesse caso, o afastamento do trabalho com percepção de auxílio doença gera a suspensão contratual e prorroga o vencimento do contrato de trabalho até término do afastamento ou concessão da aposentadoria por invalidez, nos termos do artigo 476 da CLT. Mantenho a decisão que julgou procedente o pedido.(TRT da 2ª Região; Processo: 1000434-32.2016.5.02.0033; Data de assinatura: 15-02-2017; Órgão Julgador: 6ª Turma – Cadeira 5 – 6ª Turma; Relator(a): RICARDO APOSTOLICO SILVA)
O afastamento para tratamento de questões psicológicas deve ser tratado com a mesma naturalidade que uma lesão física grave, como a ruptura do ligamento cruzado anterior, que afasta um atleta por quase um ano.
Manter um atleta que está a passar por um momento difícil, com a sua saúde mental prejudicada, seja por uma situação familiar ou pela pressão, pode aumentar o risco de lesão e prejudicar o planeamento da temporada.
Por isso, é fundamental que os clubes tenham médicos e psicólogos para acompanhar os atletas. Caso o profissional identifique a necessidade de afastamento, deve atuar sem receios, priorizando a saúde do ser humano.
Infelizmente, pode haver pressão, especialmente sobre jovens em modalidades individuais, para competir mesmo fora de condições ideais, o que pode trazer consequências graves para o atleta e para a sua família.
A saúde mental deve ser tratada com a devida importância para garantir o bem-estar a longo prazo, evitando o famoso “jogar no sacrifício”, que pode ter consequências muito mais duradouras que as físicas.
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[1] Art. 476 – Em caso de seguro-doença ou auxílio-enfermidade, o empregado é considerado em licença não remunerada, durante o prazo desse benefício.