Em 2015, a Prefeitura de São Paulo iniciou um movimento para cobrar o Imposto Sobre Serviços (ISS) de diversas atividades realizadas pelos clubes de futebol, como os programas voltados a torcedores, eventos e a cessão de marcas. Segundo estimativas, em 2019, as cobranças totalizavam cerca de R$ 500 milhões.[1]
Os três clubes da capital paulista sofreram autuações na gestão Fernando Haddad (PT). À época, a Prefeitura do Município fez uma ofensiva se pautando no disposto no artigo 50 da Lei nº 14.256, de 29.12.2006, que revogou a isenção do ISS existente sobre serviços prestados por associações culturais e desportivas.
Diante do fim da isenção até então existente, a municipalidade de São Paulo avaliou diversas atividades praticadas pelos clubes e passou a cobrar o ISS sobre aquelas que considerava serviços.
Dentre as atividades consideradas serviços pela Prefeitura de São Paulo, encontravam-se:
(i) o licenciamento de direito sobre imagens e sons de eventos esportivos;
(ii) o licenciamento de uso de marcas e patrocínio esportivo;
(iii) a cessão de uso de espaço de camarotes, de áreas e estádios para a realização de shows e eventos;
(iv) a oferta de planos de benefícios para sócios-torcedores; e
(v) a venda de ingressos para competições esportivas.
Diante das exigências milionárias, dois pontos foram levantados de imediato pelos clubes de futebol: (i) a revogação da isenção concedida pela lei local relativa ao ISS, não afastou o fato de tais instituições gozarem da imunidade tributária a impostos, prevista no artigo 150, IV, “c”, da Constituição Federal; e (ii) as atividades denominadas pelo Fisco municipal como sendo serviços, em sua grande maioria, não correspondiam a obrigações de fazer, mas sim, de dar, estando fora do campo de incidência do imposto.
O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP), ao analisar os casos de Palmeiras, São Paulo e, no mês passado, Corinthians, chegou à mesma conclusão: plea necessidade de cancelamento das autuações que cobravam o ISS sobre: (i) o uso de marcas – em linha com posicionamento consolidado do Órgão Especial do TJSP; (ii) sobre a exploração de espaços para realização de eventos; e (iii) programas de sócio torcedor.
A cobrança do ISS só foi mantida sobre valores de venda de ingressos e foram confirmadas multas pelo não preenchimento de documentos fiscais.
A discussão entre a Prefeitura de São Paulo e os clubes paulistanos apenas revive uma batalha que há muito vem sendo travada em nossos tribunais, relativa ao conceito de serviços. A concepção mais tradicional da doutrina e mesmo da jurisprudência defende que serviço é uma obrigação de fazer. Mas esse conceito se mantém nos dias atuais ou deve ser abandonado em busca de algo novo, mais adequado à realidade do mundo contemporâneo?
Para respondermos a essa indagação e avaliarmos como decidiu o TJ/SP no recente caso do Corinthians, bem como nos processos de Palmeiras e São Paulo, convém começar nossa análise pelo artigo 156, III, da Constituição Federal e o artigo 1.º da Lei Complementar 116/2003.
Segundo tais dispositivos, o fato gerador do ISS é prestação de serviços de qualquer natureza, assim entendido como serviço o desempenho de uma atividade humana, material ou imaterial, de cunho econômico.
Como a legislação não sana todas as dúvidas sobre o que é serviço, um bom recurso é olhar para construção interpretativa trazida pela jurisprudência. No julgamento do Recurso Extraordinário 116.121/SP, ocorrido em 11.10.2000, o Tribunal Pleno do STF esclareceu que a prestação de serviço em que fosse “envolvido na via direta o esforço humano” poderia ser considerada fato gerador do ISS.
Os Ministros vencidos no julgamento manifestaram o entendimento de que a expressão “de qualquer natureza” prevista na Constituição Federal traria ao legislador municipal uma competência residual, que permitiria ao ISS incidir sobre qualquer atividade que não representasse uma venda de mercadorias ou um trabalho assalariado.
Apesar disso, prevaleceu à época o entendimento de que o conceito de serviço para fins de incidência do ISS não seria propriamente um conceito residual com relação às operações de circulação de mercadorias ou financeiras, mas sim um tipo jurídico que deveria seguir a definição de serviço como obrigação de fazer, tal qual prevista no Direito Privado.
Após esse julgamento, o entendimento adotado no Recurso Extraordinário 116.121/SP foi reexaminado em outras oportunidades pelo STF, sendo confirmado, em regra, pelo Tribunal.
Entretanto, tal distinção entre obrigações de dar e de fazer foi em certa medida relativizada em 2.12.2009, por ocasião do julgamento do Recurso Extraordinário 592.905/SC, que tratou da incidência do ISS sobre as operações de leasing.
Nessa ocasião, o Ministro Eros Grau, relator do processo, considerou que a incidência do ISS somente sobre obrigações de fazer, nos termos definidos no Direito Privado, esvaziaria o conteúdo da expressão “de qualquer natureza” prevista no texto constitucional. Na visão do Ministro, “toda atividade de dar consubstancia também um fazer e há inúmeras atividades de fazer que envolvem um dar”.
Apesar da aparente flexibilização trazida pelo Ministro Eros Grau sobre a distinção das obrigações de dar e as obrigações de fazer para fins de incidência do ISS, o resultado final do julgamento foi por considerar as operações de leasing financeiro e de lease-back como tributáveis pelo imposto, pois correspondem a atividades que envolvem tanto uma obrigação de dar quanto uma obrigação de fazer, ao passo que as operações de leasing operacional foram consideradas não tributáveis pelo imposto municipal, em razão de a atividade revelar a preponderância da obrigação de dar em detrimento de eventual fazer.
Nesse momento, apesar de haver uma sinalização do STF quanto a não existir uma distinção tão clara entre o que é obrigação de fazer e o que é obrigação de dar, foi mantida a orientação firmada no precedente de 2000 (Recurso Extraordinário 116.121/SP). A premissa básica da não incidência sobre as obrigações de dar foi reafirmada, muito embora limitada aos casos em que a obrigação de dar estivesse essencialmente dissociada de um fazer.
Em 2010, o STF aprovou a edição da Súmula Vinculante 31 para confirmar, com base nos precedentes estabelecidos pela Corte, que “é inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de qualquer natureza – ISS sobre operações de locação de bens móveis”, transmitindo novamente a mensagem de que o imposto municipal só pode recair sobre atividades que envolvam um fazer.
Nem mesmo com a adoção de uma súmula a discussão arrefeceu. Em 29.9.2016, o Plenário da Suprema Corte voltou a analisar o assunto quando do julgamento do Recurso Extraordinário 651.703/PR e, nessa ocasião, firmou precedente, em sede de repercussão geral, no sentido de as atividades realizadas pelas operadoras de planos de saúde estariam sujeitas à incidência do ISS.
O Ministro Relator Luiz Fux defendeu que o conceito de serviço previsto na Constituição Federal não se confunde com o conceito de serviço adotado pelo Direito Privado, motivo pelo qual a caracterização do fato gerador do ISS não estaria limitada às típicas obrigações de fazer.
O Ministro voltou a defender um retorno à conceituação do fato gerador do ISS pela perspectiva residual, ou seja, pela possibilidade de incidência do imposto municipal sobre as atividades, materiais ou imateriais, que: (i) gerem utilidade para terceiros e (ii) não estejam sujeitas à incidência do ICMS ou do IOF, tal qual havia sido feito por parte dos Ministros vencidos no julgamento do Recurso Extraordinário 116.121/SP, em 2000.
Diversamente, o Ministro Marco Aurélio divergiu por considerar que a verificação da presença de esforço humano por meio da realização de uma obrigação de fazer continuaria consistindo em requisito essencial para a tributação pelo ISS, ainda que envolva, para a execução, certas obrigações de dar.
Ao final do julgamento, nem todos os ministros se manifestaram expressamente acerca da (i) superação, total ou parcial, do precedente de 2000 (Recurso Extraordinário 116.121-3/SP); (ii) adoção do critério explicitado pelo Ministro Eros Grau no precedente de 2009 acerca das operações de leasing (Recurso Extraordinário 592.905/SC); ou (iii) aplicação da tese da residualidade defendida pelos Ministros Luiz Fux (Recurso Extraordinário 651.703/PR).
Com isso, a definição do campo de incidência do ISS não foi claramente definida, mas de toda discussão havida no STF, fica evidente não se tratar de uma simples dicotomia entre obrigações de dar e de fazer. Existe, em verdade, uma ampla zona cinzenta, na qual as atividades se verificam simultaneamente e muitas vezes não se sabe com segurança se há uma obrigação sujeita ao ISS ou não.
Essa situação de falta de certeza sobre o que é e o que não é serviço, acaba fomentando litígios e mais litígios, que apenas aumentam o volume de processos nos Tribunais brasileiros. O caso dos clubes de futebol paulistanos é apenas mais um exemplo das intermináveis disputas ocasionadas por esse cenário nebuloso.
Um caminho que propomos para se chegar a soluções mais assertivas nas disputas entre fisco e contribuinte é identificar a pretensão daquele que contrata a atividade. O que ele efetivamente deseja ao firmar uma obrigação? A entrega de um bem? A prestação de um serviço? A resposta a essas questões será determinante na definição da incidência ou não do ISS. Se o contratante almeja um fazer, estar-se-á diante do campo de incidência do imposto municipal. Se o contratante busca receber um bem (obrigação de dar), o ISS não poderá recair sobre a operação.
Assim, os clubes, ao realizarem uma atividade em benefício de terceiro, sem vínculo de emprego e com conteúdo econômico, ficam sujeitas à incidência do ISS, quando aquilo que deseja o contratante da atividade for um fazer.
Firmes nessa premissa, entendemos que foram acertadas as decisões do TJ/SP em relação à cobrança do ISS dos clubes de futebol e, em especial, mais recentemente no caso do Corinthians.
Atividades como o licenciamento de direito sobre imagens e sons de eventos esportivos, uso de marcas e patrocínio esportivo, cessão de uso de espaço de camarotes, de áreas e estádios para a realização de shows e eventos, são compostas por obrigações (de dar) fora do escopo de incidência do ISS. O contratante nesses casos, almeja um bem, e não um serviço. Serviço, aliás, que na maior parte dessas hipóteses inexiste, não se verificando nem mesmo de forma subsidiária.
Semelhante raciocínio pode-se desenvolver para os planos de benefícios para sócios-torcedores. Como bem destacou o relator da Apelação nº 1013861-42.2021.8.26.0053, “o programa apenas concede desconto nas vendas de ingressos, nas compras antecipadas para jogos de seu mando em seu estádio, não havendo qualquer serviço de bilheteria a desencadear a incidência de ISSQN”.
Já a venda de ingressos para competições esportivas, de fato consiste em um serviço, pois quem adquire os ingressos almeja um serviço de entretenimento, um espetáculo com todas as benesses que lhe são próprias, muitas delas típicas de serviços de hotelaria.
Essa briga, entretanto, ainda deve estar longe do fim. Em nota, a Procuradoria Geral do Município de São Paulo afirmou que “manejará os recursos pertinentes e cabíveis”, por entender que a Supremo Corte “vem reiteradamente superando o conceito de serviço extraído unicamente do direito privado para fins de tributação pelo ISSQN (ARE 1.289.257/SP; ARE 1.224.310-AgRg; ARE 1.166.624-AgRg e Rcl 8.623-AgR)”.
O ponto que fica para a reflexão é que apesar de a dicotomia entre fazer e dar não ser tão límpida nos dias atuais, na medida em que a maioria dos serviços envolvem atividades mistas, o conceito de serviço não é elástico. Ele guarda balizas constitucionais que delimitam sua abrangência, e não permitem ao intérprete chamar de serviço o que não o é. Definitivamente, não se trata de um cheque em branco.
Finalizamos com a observação feita pelo Desembargador relator do caso do Corinthians, Rezende Silveira, que bem pontuou que não se pode confundir o conceito de serviço com outros conceitos, “sob pena de dilargar ao infinito o conceito jurídico de serviço e abarcar todo e qualquer gênero de atividade humana”.
Crédito imagem: Corinthians
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[1] https://apet.org.br/noticia/corinthians-afasta-na-justica-cobranca-milionaria-de-iss/, acesso em 6.4.2022.