A arbitragem feminina, assim como o futebol feminino, vem de uma história de luta, preconceito, determinação. Não se pode falar de mulher na arbitragem sem citar Asaléa de Campos Fornero Medina, conhecida historicamente por “Léa Campos”. Ela simplesmente foi a primeira mulher reconhecida pela FIFA, no mundo, como árbitra de futebol. Nascida em 1945 na cidade de Abaeté, Minas Gerais, graduada em educação física e jornalismo, Léa também lutou Boxe e atualmente mora nos Estados Unidos, fez parte do quadro da FIFA entre os anos de 1971 e 1974.
Com a pandemia da Covid-19 muitas pessoas estão passando por dificuldades e não somente no Brasil. Léa e o marido, Luiz Medina que está com câncer, estão sem poder trabalhar com o isolamento social, foram despejados do apartamento que moravam e momentaneamente vivendo em um quartinho na casa de uns amigos, porém brevemente pode ser que precisem deixá-lo, pois o filho dos amigos deve retornar.
Léa, agora com 75 anos e usando um colar cervical, pois há pouco tempo caiu e precisou ser socorrida de ambulância, está pedindo ajuda financeira para os colegas da arbitragem e do futebol.
Os árbitros e dirigentes resolveram fazer uma campanha junto com uma “vaquinha” para poder ajudar a grande pioneira da arbitragem feminina no Brasil e no mundo.
Ao conversar com a Léa pelo WhatsApp e perguntar como está a situação dela e do marido, a resposta foi:
“Bem difícil. O dono do apartamento trabalha na mesma empresa que meu esposo trabalha. Ficou acertado que assim que normalizar vamos pagar a ele. Nossa alimentação e comprada por nós. O governo americano deu uma ajuda financeira à todos que perderam o emprego. Mas é incômodo a liberdade nunca é a mesma. Com a campanha que as árbitras e árbitros estão fazendo para arrecadar dinheiro vamos sair dessa se Deus quiser e Ele quer.”
Léa ainda agradece toda a mobilização para ajuda-la e fica feliz com o espaço ocupado pelas mulheres no futebol e na mídia.
Léa Campos e Pioneirismo
Nada melhor do que conhecer esta história contada pela própria Léa.
““Puta merda, essa mulher não desiste nunca”. Foi isso que João Havelange, na época presidente da CBD (Confederação Brasileira de Desportos), em 1971, disse sobre a minha persistência.””, segundo Léa.
Quando terminou o curso de arbitragem em 1967, queria receber o diploma como todos os outros alunos, mas não foi o que aconteceu. Quatro anos depois da conclusão, Léa recebeu um convite da Fifa para arbitrar um amistoso e também o primeiro Campeonato Mundial de futebol feminino, no México, mas para isso precisava do diploma.
“Para conseguir o diploma, levei uma carta, na verdade, um foi um bilhete, do Presidente do Brasil, Médici, ao Havelange. Médici era minha penúltima alternativa, pois a última seria o Papa. Eu já tinha esgotado tudo com João Havelange, já não tinha mais saída para mim. A última frase dele para mim foi que enquanto ele presidisse a CBF [na época, CBD], nenhuma mulher atuaria no futebol”., conta Léa.
Médici passaria rapidamente por Belo Horizonte, cidade onde ela morava, desta forma solicitou uma audiência rápida, de apenas 30 segundos e conseguiu, garantindo que ainda sobraria tempo.
“Era uma sexta-feira. Fui lá no hotel onde ele recebia o pessoal da imprensa, e ele leu meu nome no papel e mandou me chamar: ‘você pediu 30 segundos de audiência, dá tempo de piscar o olho’. E eu falei ‘para mim é o suficiente’”, relembra. “Eu preciso que você mande uma carta para o João Havelange, porque recebi um convite para arbitrar futebol feminino no México, porque aqui futebol feminino não existe e eu preciso de autorização para esse convite e representar o Brasil, muito obrigada é isso que eu quero”.
“Precisei de 26 segundos e o presidente já tinha uma resposta. Ele me disse que esses 4 segundos que sobraram, ele me esperava em Brasília na segunda-feira para almoçar com ele”.
“Eu fiquei muito ansiosa, com medos e receios. Meu pai me dizia: ‘Léa, por que você está assim? Você quebrou tantas barreiras, você vai se coroar, sem medo, sem receio. Com pensamentos positivos na sua mente, você vai conseguir’. E eu peguei o ônibus no domingo à noite para ir até Brasília.”
“Estava trêmula, o almoço com o presidente estava confirmado e ele escreveu um bilhete de próprio punho afirmando que eu representaria o Brasil no México como árbitra.”
Léa conta detalhes do almoço: “Ele me levou até o quarto do filho dele. Ele tinha mais coisas sobre mim do que eu. O cara era meu fã, menina. Incrível! Eu nunca esperava isso, ‘nunca dos nuncas’, como eu costumo dizer. E ele ainda me deu uma revista francesa, a mesma que elege os melhores jogadores do mundo e disse que tinha certeza que o filho dele tinha mais, porque tudo sobre minha vida ele comprava em duplicata.”
“Ele me mandou com um avião das Forças Armadas Brasileiras (FAB) para o Rio de Janeiro, para que eu falasse com o João Havelange no dia da despedida do Pelé”, relembra.
Léa conta que, ao chegar no Rio de Janeiro, bateu na porta de João Havelange com o bilhete em mãos. No dia, aconteceria uma coletiva de imprensa no final da tarde por conta da despedida de Pelé.
Dentro da sala, ela entregou o bilhete e conta que Havelange optou por adiantar a entrevista coletiva. Todos foram para a sala de imprensa e Léa reproduziu o discurso:
“Estou com a felicidade incontida hoje. Porque eu tenho a oportunidade de, no meu mandato, poder levar ao mundo a primeira mulher árbitra de futebol profissional, e é na minha gestão. É com muito orgulho e com muita felicidade que eu faço o mundo saber que a primeira árbitra de futebol é brasileira e vai sair do mundo como representante máxima do futebol brasileiro”.
A luta por reconhecimento durante a Ditadura Militar
A luta da mulher no futebol em época de Ditadura Militar, como estudado anteriormente no “Surgimento do Futebol Feminino”, na Era Getúlio Vargas, onde a constituição brasileira instituiu que mulher jogando futebol seria um crime, também causou problemas à Léa Campos. “Eu não queria jogar, apenas arbitrar. Porém, muitas vezes não resistia e acabava jogando nos campinhos do bairro, mas o que era para ser diversão, terminava na delegacia.”
“Nunca deixei nenhuma menina ir presa por minha causa. A polícia vinha, falava para todo mundo correr e eu ficava sozinha. A bola era minha, a ideia era minha”, conta Léa.
Mas completa: “As meninas me repudiavam por causa disso, mas nunca dei importância para elas, era meu desejo que tinha que ser realizado, não tinha cerca que eu não pulasse”.
Léa conta que algumas mulheres de São Paulo fizeram um abaixo-assinado, enviado para a CBF não liberar seu diploma e em Belo Horizonte, fizeram uma passeata na Avenida Afonso Pena, lutando também contra ela.
“Tudo isso rendeu muitas idas a delegacia e uma amizade com o delegado que, certa vez, desistiu de me manter por lá e me disse: “você vai continuar fazendo, vão continuar te prendendo, por minha conta, está liberada. A polícia pode te trazer, mas você entra por uma porta e sai pela outra.’”
Léa além das quatro linhas
Sua primeira experiência foi no México, apitando um jogo entre Itália x Uruguai. Na ocasião, tocaram o hino do Brasil em sua homenagem.
Em 1974, próximo a três Corações-MG, a árbitra sofreu um acidente de ônibus e teve que encerrar a carreira, no dia da fatalidade. Léa ficou muito tempo internada, quase perdeu a perna esquerda e levou 10 anos para se recuperar totalmente.
Léa Campos foi pioneira na arbitragem e também no jornalismo esportivo, pois foi uma das primeiras repórteres de campo e passou por muitas indagações todas as vezes que precisava entrevistar jogadores dentro do vestiário.
Em 1993, Léa foi morar nos Estados Unidos da América com seu marido, Luiz Medina. Em 2013, Léa venceu um câncer de mama. E hoje não se pode falar de arbitragem feminina sem contar a história e luta desta pioneira.