Por Carlos Henrique Ramos[1] e Heloisa Schmidt Fernandes Medeiros[2]
Desde março de 2020, a pandemia da COVID-19 atingiu em cheio a dinâmica do esporte em todo o mundo. A incerteza causada pela paralisação de várias competições, o adiamento de outras (como as Olimpíadas de Tóquio, a Eurocopa e a Copa América) e a futura retomada de torneios sob o regime de portões fechados geraram grande incerteza sobre o futuro, conflitos com as emissoras detentoras de direitos de transmissão, queda brutal de arrecadação, dificuldade de planejamento de investimentos e o natural refreamento do volume de negócios, nítido a cada janela de transferências.
Ocorre que, de um lado a crise gerada pela pandemia, de certa maneira, congelou o curso natural das coisas no âmbito esportivo, por outro serviu para acelerar processos de mudança inevitáveis, mas que por razões outras estavam refreados. Na Europa, há tempos já era divulgada uma pretensa intenção de grandes clubes de romper com a UEFA (por conta de discordância envolvendo premiações, calendários e falta de canais de diálogo e apoio na fiscalização do fair play financeiro) e criar uma superliga de clubes, que organizaria um torneio alternativo à atual UEFA Europa League. Num primeiro momento, até mesmo a FIFA supostamente apoiaria a iniciativa. Como a pandemia reduziu substancialmente os incomes das agremiações, o movimento foi acelerado e a Superliga, composta por 12 clubes, anunciada na noite de 18 de abril de 2021. O caráter elitista da proposta, em ferimento à tradição comunitária esportiva europeia, gerou imenso backlash e o projeto ruiu em menos de 48 horas, mas serviu para a UEFA reagisse e anunciasse, na mesma semana, um novo formato para a maior competição de clubes do mundo.
O futebol brasileiro não passaria imune à crise ocasionada pelo momento atípico. A queda de receitas e o crescente e imediato endividamento dos clubes (que já era grave) acelerou movimentos de bastidores. No dia 18 de junho de 2020, foi publicada a Medida Provisória 984/2020 (a “MP do Mandante”) para, dentre várias disposições, alterar o art. 42-A da Lei Pelé e estabelecer que os direitos de transmissão (direito de arena) passariam a ser de titularidade exclusiva dos clubes mandantes. A referida MP causou grande instabilidade do mercado, gerou dúvidas envolvendo direito intertemporal e promoveu uma verdadeira dança das cadeiras na divisão de forças no mercado de direitos televisivos por conta dos novos contratos individualmente avençados e nela ancorados. Sem acordo no Congresso Nacional, a Medida provisória caducou e, em outubro de 2020, voltou a valer a disposição original da Lei Pelé, distribuindo o direito de arena entre as equipes mandante e visitante. Resultado: nova fonte de insegurança jurídica. Não obstante, o tema voltou à pauta em 2021. No dia de 14 de julho, o PL n. 2.236/2021 (“PL do mandante”) foi aprovado na Câmara dos Deputados e a expectativa é de que seja ratificado sem ressalvas no Senado Federal.
Em paralelo, o PL n. 5.516/2019 (clube-empresa), cuja proposta já havia sido votada no Senado Federal, teve aprovação simbólica na Câmara dos Deputados no mesmo no dia 14 de julho, restando apenas a sanção presidencial. Visto por muitos clubes como uma panaceia para a profissionalização da gestão e para a atração de novos investimentos e receitas (especialmente neste momento de crise), a nova regulamentação prevê a figura da SAF (uma sociedade anônima específica para o futebol), que contará com um regime tributário diferenciado, permitirá a participação de pessoas físicas, empresas e fundos de investimentos nas atividades dos clubes e a emissão de debêntures como alternativa para captação de recursos (desde que fiscalizados pela CVM).
O período de ebulição nos bastidores do futebol nacional ganhou ainda maior proporção a partir dos escândalos envolvendo a CBF e o afastamento do seu então presidente Rogério Caboclo. A instabilidade institucional daquela que sempre governou o futebol em terra brasilis conforme seus próprios interesses impulsionou os clubes a oficializarem por meio de documento ratificado (a princípio) por todos os clubes da série A, em junho de 2021 (e convidados os clubes da série B), a intenção de fundar uma liga para organizar o Campeonato Brasileiro, até então um produto da CBF.
As reinvindicações dos clubes são antigas e conhecidas: a existência de canais mais efetivos de diálogo com a CBF; a paralisação das competições durante as famigeradas “datas FIFA”, evitando o esvaziamento daquele que deveria ser o produto premium do futebol nacional; melhor qualidade dos gramados; uma Justiça Desportiva própria, profissional e desvinculada das federações; reorganização do calendário, especialmente a partir do enxugamento dos campeonatos estaduais, permitindo-se o espaçamento de datas e evitando a sobreposição de fases decisivas do Campeonato Brasileiro, da Copa do Brasil e das competições continentais da CONMEBOL; a modificação estatutária que viabilize a redução do poder de influência das federações estaduais no processo eleitoral da CBF (nos termos do Estatuto da CBF, estas têm peso 3 na Assembleia Geral Eleitoral, ao passo que os clubes da série A e B, possuem pesos 2 e 1, respectivamente); entre outras.
Sob o ponto de vista do direito desportivo, é inegável a viabilidade jurídica da pretensa liga. Nos termos do art. 20 da Lei Pelé, as entidades de prática desportiva podem organizar ligas, desde que comuniquem o fato às federações. Caso haja o aval das entidades de administração do desporto, as competições passam a fazer parte do sistema oficial daquelas entidades. Caso contrário, funcionarão de forma independente, vedada qualquer tipo de intervenção[3]. A costumeira reação das entidades de administração do desporto diante das propostas de criação de ligas mundo afora é claramente monopolista e já conhecida. Ancoradas nos estatutos da FIFA e na estrutura associativa voluntária e piramidal do esporte, aquelas ameaçam os clubes com a possibilidade aplicação da pena de desfiliação do sistema FIFA caso organizem competições piratas, sem o aval da respectiva federação. Ocorre que, caso isto ocorra e a questão seja judicializada, é bastante grande a possibilidade de as punições serem anuladas com base no direito concorrencial, como vem sendo o entendimento do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Comercial de Madrid, por exemplo.
Agora, sob o prisma puramente esportivo, algumas considerações adicionais mostram-se necessárias. Mesmo que CBF não possa juridicamente impedir a criação da liga, ter uma liga pirata ou independente não é uma situação que interesse aos clubes. Na prática, as grandes equipes precisam fazer parte do sistema FIFA, o que viabiliza maior acesso a recursos, premiações e, especialmente, participação nas competições continentais. Em um momento de debilidade institucional da CBF, os clubes estão em posição privilegiada na mesa de negociações para buscar o aval da entidade. Mas como buscá-lo? Da mesma maneira que nos processos de criação das maiores ligas europeias, especialmente a Premier League.
A liga organizaria o Campeonato Brasileiro das séries A e B, ao passo que a CBF cuidaria da seleção brasileira e da Copa do Brasil e, em troca, por exemplo, à entidade poderia ser requisitado seu know-how logístico para auxiliar na organização da nova competição e a ela poderia restar assegurado algum tipo de poder decisório limitado ou de veto nas deliberações da liga, com previsão expressa nos estatutos da mesma. O processo não é simples, mas há um caminho. É preciso habilidade política para viabilizá-lo e, especialmente, unidade dos clubes para se libertarem da eterna subordinação à CBF, que ainda pode tentar implodir o movimento oferecendo benesses individuais a determinados clubes para deixarem o movimento. E sabemos que, entre os benefícios coletivos de longo prazo e vantagens individuais imediatas, a segunda opção muitas vezes acaba sendo muito sedutora, especialmente para os clubes mais enfraquecidos e endividados, por exemplo.
Com o passado conhecido das ligas brasileiras, a coerência dos clubes deve caminhar com a manutenção de uma postura unida e sem apego ao imediatismo futebolístico. A título de exemplo, a Copa União, de 1987, rendeu anos de discussão sobre o campeão nacional daquele ano, só sendo decidida pelo Supremo Tribunal Federal[4] mais de 30 anos depois, em 2018. Ainda na ideia de ligas, alguns times da elite brasileira tentaram emplacar a Primeira Liga, que contou com edições em 2015 e 2016 – em 2018 cogitaram um novo modelo, mas desistiram por falta espaço no calendário dos clubes. De forma similar, a Primeira Liga surgiu em um momento de instabilidade tanto na CBF como no cenário do futebol mundial[5]. A partir de exemplos conhecidos de insucesso no cenário brasileiro, exige-se, para um devido funcionamento da futura liga, uma postura diferente das entidades de prática desportiva.
Reconhece-se, no entanto, que a nova possibilidade tem pontos mais favoráveis que a anterior inclusive no Congresso Nacional. Criada a liga, a aprovação do já mencionado PL do Mandante pode servir para que os clubes negociem coletivamente (em bloco) os direitos de transmissão, cujo contrato atual vence em 2024. Ancorados na experiência europeia, novos horizontes de arrecadação podem ser delineados, privilegiando-se o aumento da arrecadação global e uma distribuição mais justa entre os competidores, que privilegie o desempenho e o mérito esportivo, aumentando-se a competitividade.
Os clubes precisam, ainda, se certificar que os estatutos na nova liga prevejam mecanismos de compliance e de transparência na tomada de decisões e que os dirigentes da liga sejam profissionais e remunerados (executivos de mercado desvinculados das práticas e das políticas internas dos clubes, evitando-se conflito de interesses). Grupos de trabalho já foram formados com o mister de elaboração dos referidos estatutos. Quem sabe, ainda, esta pode ser uma oportunidade de também colocar na mesa de negociações uma proposta de alinhamento ao calendário europeu, como já ocorre em grande parte dos países sul-americanos. A questão da arbitragem também merecerá atenção especial, pois atualmente esta é uma incumbência de uma comissão específica da CBF.
É inegável que um novo horizonte de desenvolvimento se delineia para o futebol nacional. Toda a qualquer liga precisa ser encorada em pilares fundamentais como a independência institucional e econômica[6]. Não há um torcedor que se preze, que no frigir dos ovos é o destinatário final do produto “futebol”, que não se sinta incomodado com o abandono e desprestígio do campeonato nacional (que é a grande galinha dos ovos de ouro), com gramados de péssima qualidade e tendo que conviver com o triste sentimento de que a seleção brasileira se tornou inimiga do seu clube de coração. Que os clubes tenham habilidade para aproveitar esta importante janela de oportunidades.
Crédito imagem: CBF
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[1] Doutor em Direito. Especialista em Direito Desportivo. Coordenador do Grupo de Estudos em Direito Desportivo do Ibmec RJ (GEDD Ibmec).
[2] Pós-Graduanda em Direito Desportivo pela Universidade Positivo. Fundadora e Pesquisadora do Grupo de Estudos em Direito Desportivo do Ibmec RJ (GEDD Ibmec). Auditora da 1ª Comissão Disciplinar do STJD do Judô.
[3] O art. 24 do Estatuto da CBF que prevê a vinculação das ligas ao seu calendário oficial depende do cumprimento dos requisitos exigidos e da aprovação de seus estatutos pela CBF e de decisão exclusiva de sua Assembleia Geral Administrativa, na qual somente votam as 27 federações estaduais. A nosso ver, tal dispositivo não pode ser invocado pela entidade, pois uma norma estatutária privada não pode se sobrepor à lei federal.
[4] O STF reconheceu o Sport como campeão brasileiro de 2018, dando fim a uma disputa do Flamengo para sagrar-se campeão. No entanto, pela complexidade da questão, a decisão pelo Supremo Tribunal de Justiça – bastante discutível do ponto de visto desses autores – é assunto para outro momento.
[5] A título de recordação, ocorreu em 2015 a prisão do ex-presidente da entidade José Maria Marin em Zurique, na Suíça, no FIFAGATE, as vésperas da eleição presidencial da entidade internacional.
[6] A previsão inicial, ancorada em consultorias internacionais, é de que cerca de 3 bilhões de reais em receitas possam ser captados para iniciar os trabalhos da liga.