Os sócios do Bahia aprovaram, no último sábado (3), a venda de 90% da Sociedade Anônima do Futebol (SAF) do clube ao City Football Group (CFG), empresa responsável pela administração do Manchester City, da Inglaterra. Com o negócio concluído, o Brasil entrou de vez no território do multi-club ownership (MCO) – termo em inglês que se refere à aquisição ou controle de dois ou mais times por uma única pessoa, direta ou indiretamente – uma vez que o Tricolor se juntará a outras duas equipes da América do Sul administradas pelo grupo, o Bolivar (Bolívia) e o Montevideo City Torque (Uruguai).
A partir daí, novos fatos precisam ser analisados. Um deles diz a respeito a um problema já conhecido em outros países do mundo: o conflito de interesses. Por exemplo, suponhamos que essas três equipes que pertencem ao City Group se classifiquem para a Libertadores ou Sul-Americana. Elas poderiam se enfrentar? Há previsão sobre isso nos regulamentos da Conmebol?
O advogado Luiz Marcondes, especialista em direito desportivo e colaborador do Lei em Campo, conta que o Licenciamento de Clubes da Conmebol não permite a prática multi-club ownership sob justificativa de garantir a ordem e lisura desportiva das competições sul-americanas.
O documento em questão diz o seguinte:
“…(o clube licenciante) deve apresentar uma declaração juridicamente válida que descreva a estrutura da propriedade e o mecanismo de controle do clube e que confirma que nenhuma pessoa física ou jurídica implicada na gestão, administração e/ou atuação esportiva do clube direta ou indiretamente:
a) Possui ou negocie títulos ou valores de nenhum outro clube que participa da mesma competição; ou
b) Possui a maioria dos direitos de voto dos acionistas de qualquer outro clube que participa da mesma competição; ou
c) Tem o direito de designar ou suspender a uma maioria dos membros dos órgãos de administração, gestão ou supervisão de qualquer outro clube que participa da mesma competição; ou
d) É acionista e controla uma maioria dos direitos de coto dos acionistas de qualquer outro clube que participa da mesma competição em conformidade com o acordo assinado com outros acionistas do clube do qual se trate; ou
e) É membro de qualquer outro clube que participa da mesma competição; ou
f) Está implicada em nenhuma qualidade na gestão, administração e/ou atuação esportiva de qualquer outro clube que participa da mesma competição; ou
g) Tem qualquer tipo de poder na gestão, administração e/ou atuação esportiva de qualquer outro clube que participa da mesma competição”
“Entretanto, sabendo que as normas proibitivas devem ser interpretadas restritivamente, os grupos econômicos tendem a constituir estruturas societárias para os clubes que não violam frontalmente as proibições das normas atuais. Conflito de interesses econômicos e desportivos é um tema sensível e certamente será umas das principais preocupações da FIFA e demais instituições federativas nos próximos anos”, pondera o especialista.
João Paulo di Carlo, advogado especializado em direito desportivo e colunista do Lei em Campo, diz que “a necessidade de regular os MCO’s talvez seja uma das principais demandas do futebol mundial atualmente”.
“Diante do crescimento exponencial dessa estratégia de negócio mundo afora, é fundamental agir com presteza e ter um debate profundo acerca da sua utilização. Especificamente sobre as competições realizadas pela Conmebol, há uma previsão sobre independência das entidades de prática desportiva e conflito de interesses, tanto no Código de Ética, quanto no documento de Padrão de Qualidade para o sistema de concessão de licenças”, afirma.
Ainda segundo João, a inexistência de casos práticos faz com que não tenhamos uma definição mais específica sobre critérios de análise acerca do que seria em território sul-americano.
“É possível que a Conmebol adote um posicionamento parecido com o da UEFA e permita, caso venha a ocorrer, que ambos Montevideo City Torque, Bahia e Bolivar participem de uma mesma competição no futuro. À priori, porém, pela literalidade da regulamentação e pela defesa à integridade das competições, não há a possibilidade de clubes controlados pelo mesmo grupo ou pessoa participarem de uma mesma competição sul-americana”, afirma.
Conhecido popularmente aqui no Brasil como conglomerados de clubes, o multi-club ownership está sendo cada vez mais discutido pelos profissionais que atuam com o futebol nos últimos meses. Com o advento da Lei 14.193/21, a Lei das SAFs, o termo adentrou definitivamente o território brasileiro. Nesse sentido, é importante mencionar que Cruzeiro, Botafogo e Vasco da Gama já pertencem a esse rol. O grupo americano 777 Partners – que adquiriu a SAF do Cruz-Maltino recentemente – é, por exemplo, detentor de ações minoritárias do Sevilla, da Espanha, e controlador do Genoa, da Itália.
O surgimento dos conglomerados
Esse modelo de negócio não é uma novidade e já existe desde a década de 90, com a empresa ENIC, que, muito embora não estivesse diretamente envolvida no esporte, adquiriu porcentagens significativas em ações de vários clubes, com o único intuito de valorizar as quotas e revende-las posteriormente, mas sem interferir nos assuntos desportivos, inerentes à administração dos clubes. Na época, essa empresa obteve ações do Tottenham (Inglaterra), Basel (Suíça), Rangers (Escócia), AEK Athens (Grécia), SK Slavia Praga (República Tcheca), etc. e continua a ser a acionista majoritário do clube inglês.
O crescimento desse modelo de negócio, porém, teve franca ascensão em 2015, após a FIFA introduzir o artigo 18ter ao Regulamento sobre Status e Transferências de Jogadores (RSTJ), que proibiu a aquisição de direitos econômicos dos jogadores por terceiros, conceito em que se enquadram os grandes empresários e os fundos de investimento.
A FIFA acreditava que essa medida permitiria que os terceiros passassem a focar seus investimentos nos clubes, amparados de uma estrutura societária favorável, o que, segundo a mesma, aumentaria a transparência e manteria a integridade do esporte, uma vez que reduziria a influência de terceiros e o conflito de interesses, evitando-se, assim, uma possível manipulação de resultados.
Isso acabou acontecendo e os terceiros passaram a investir diretamente na aquisição de clubes. Para se ter uma ideia, entre 2016 e 2021, nas 15 principais ligas do continente europeu, o número saltou de 20 para 40 clubes. Recentemente, em um novo levantamento, concluiu-se que 156 equipes ao redor do mundo fazem parte de 60 conglomerados de clubes.
Junto desse crescimento também apareceu o conflito de interesses e a preocupação com a integridade do esporte. Um dos casos mais emblemáticos envolvendo um conglomerado de clubes aconteceu no ano de 2017, quando Red Bull Leipzig e o Salzburg se classificaram para a mesma competição europeia, no caso, a Champions League.
Para evitar problemas dessa natureza, o regulamento da UEFA Champions League, em seu artigo 5º, estabelece a impossibilidade de uma pessoa, física ou jurídica, exercer o controle ou influência sobre mais do que um clube que participe de uma mesma competição continental.
Esse controle é definido da seguinte forma:
I) possuir a maioria dos direitos de voto dos acionistas;
II) ter o direito de nomear ou destituir a maioria dos membros do órgão administrativo, de gestão ou de controle do clube;
III) ser acionista e controlar sozinho a maioria dos direitos de voto dos acionistas em virtude de acordo celebrado com os demais; ou, por último,
IV) poder exercer influência decisiva no processo decisório do clube por qualquer meio.
No caso Red Bull, após uma profunda investigação, o órgão de controle da UEFA permitiu a participação de ambos os clubes, uma vez que, segundo o órgão, a empresa RedBull era apenas uma patrocinadora do RedBull Salzburg, sem ter uma percentagem da participação e sem exercer qualquer controle sobre as operações do referido time.
Neste ano, a polêmica voltou à tona por conta da aquisição do Milan pelo fundo de investimento RedBird Capital Partners, que é acionista minoritário na gestão da Fenway Sport Group, proprietária do Liverpool, e do FC Toulouse, onde comprou 85% das ações, em 2020, após a promoção para a Ligue 1 (1ª divisão do Campeonato Francês). A UEFA deverá ser novamente provocada para decidir sobre o assunto, afinal, há controle e influência do RedBird no Liverpool, através de uma participação minoritária, no mesmo peso com a que ocorrerá no Milan?
Itália aprova regra contra conglomerados
Buscando solucionar esse problema, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) aprovou uma regra em julho deste ano onde ficará proibido que uma pessoa seja dona de mais de um clube do país a partir da temporada 2028/29. A entidade cita que a medida visa preservar a integridade do esporte.
A princípio, a FIGC pretendia que a regra fosse implementada já para a temporada 2024/25, mas decidiu adia-la depois que o empresário Aurelio De Laurentiis, proprietário do Napoli e do Bari, apresentou um apelo ao Comitê Olímpico Nacional Italiano (CONI) para que a medida fosse postergada.
As discussões sobre a multipropriedade no futebol italiano aumentaram na última temporada depois que Lazio e Salernitana, que tinham Claudio Lotito como dono, disputaram a Serie A (primeira divisão do campeonato nacional). Para evitar punições, o empresário acabou vendendo às pressas o Salernitana.
É importante lembrar que aqui no Brasil o acionista controlador não pode deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Esse veto está assegurado no artigo 27-A da Lei Pelé e também no artigo 4º da Lei 14.193/21 (Lei da SAF).
Art. 27-A. Nenhuma pessoa física ou jurídica que, direta ou indiretamente, seja detentora de parcela do capital com direito a voto ou, de qualquer forma, participe da administração de qualquer entidade de prática desportiva poderá ter participação simultânea no capital social ou na gestão de outra entidade de prática desportiva disputante da mesma competição profissional.
1º É vedado que duas ou mais entidades de prática desportiva disputem a mesma competição profissional das primeiras séries ou divisões das diversas modalidades desportivas quando:
a) uma mesma pessoa física ou jurídica, direta ou indiretamente, através de relação contratual, explore, controle ou administre direitos que integrem seus patrimônios; ou
b) uma mesma pessoa física ou jurídica, direta ou indiretamente, seja detentora de parcela do capital com direito a voto ou, de qualquer forma, participe da administração de mais de uma sociedade ou associação que explore, controle ou administre direitos que integrem os seus patrimônios.
Art. 4º. O acionista controlador da Sociedade Anônima do Futebol, individual ou integrante de acordo de controle, não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra Sociedade Anônima do Futebol.
Parágrafo único. O acionista que detiver 10% (dez por cento) ou mais do capital votante ou total da Sociedade Anônima do Futebol, sem a controlar, se participar do capital social de outra Sociedade Anônima do Futebol, não terá direito a voz nem a voto nas assembleias gerais, nem poderá participar da administração dessas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada.
Crédito imagem: Bahia/Divulgação
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