A proposta do Projeto de Lei 4.272/2019, que busca proibir a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em estádios durante campeonatos nacionais de futebol, traz à tona questões jurídicas e econômicas essenciais. O tema, embora possa parecer direto, envolve aspectos complexos que impactam não apenas a segurança pública, mas também princípios constitucionais que asseguram a liberdade econômica, a autonomia dos entes federativos e a proporcionalidade nas medidas legislativas. Neste artigo, vamos examinar a proposta à luz desses princípios, demonstrando como ela fere a Constituição e por que deve ser reconsiderada.
A proposta do PL 4.272/2019, de autoria do Deputado Severino Pessoa, instituir uma proibição nacional de consumo e venda de bebidas alcoólicas em estádios durante jogos de campeonatos de futebol. O argumento central é que a medida reduziria comportamentos violentos, frequentemente exacerbados pelo consumo de álcool em ambientes esportivos. No entanto, ao tentar implementar uma proibição absoluta, o projeto desconsidera se essa medida é realmente necessária, adequada e compatível com a ordem constitucional vigente no Brasil.
A Constituição Federal de 1988 estabelece, no artigo 170, que a ordem econômica deve ser fundada na valorização do trabalho e na livre iniciativa, buscando assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social. Entre os princípios que regem essa ordem, está a liberdade econômica, que assegura que atividades empresariais lícitas, respeitadas as normas de segurança, possam ser exploradas com autonomia. Proibir a venda de bebidas alcoólicas em eventos esportivos de forma ampla e nacional não só interfere no direito dos organizadores de gerir suas fontes de receita, mas também limita a atuação de pequenos e médios empreendedores que participam da operação desses eventos.
Ao impor uma restrição que afeta diretamente um setor econômico específico, o projeto desconsidera que a liberdade econômica é um dos pilares da Constituição. O Supremo Tribunal Federal (STF), em diversos julgamentos, tem reafirmado que o Estado não deve intervir de forma desproporcional nas atividades econômicas privadas, a menos que haja uma justificativa robusta e comprovada de que essa intervenção é indispensável ao interesse público. No caso do PL 4.272/2019, faltam dados concretos que comprovem a relação direta entre o consumo de álcool e o aumento da violência em eventos esportivos no Brasil. Ao ignorar essa análise, o projeto desrespeita o princípio da intervenção mínima do Estado na economia.
Outro ponto crucial é a competência para legislar sobre temas de segurança pública e ordem econômica, que, conforme o artigo 24 da Constituição Federal, é concorrente entre a União, os estados e o Distrito Federal. A segurança em eventos esportivos envolve realidades regionais específicas e, portanto, deve ser regulada com flexibilidade. Ao propor uma proibição nacional, o PL 4.272/2019 desrespeita a autonomia dos estados e interfere diretamente na competência legislativa dos entes federativos para decidir sobre o consumo de bebidas alcoólicas em eventos em seus territórios.
Muitos estados e municípios já possuem regulamentações específicas para a venda e o consumo de bebidas alcoólicas em estádios, considerando as particularidades de cada localidade. Em muitos casos, essa regulamentação se dá de forma proporcional, com limites de horário ou de concentração de venda, o que permite um controle efetivo sem eliminar uma importante fonte de receita dos eventos. Ao centralizar a proibição, o projeto ignora as decisões locais e impõe uma medida uniforme que não necessariamente atende às necessidades de todas as regiões.
A Constituição também exige que toda restrição imposta pelo legislador seja pautada pelo princípio da proporcionalidade, composto por três elementos: adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito. No caso do PL 4.272/2019, a medida não parece atender a esses requisitos.
Primeiramente, a medida deve ser adequada, ou seja, deve demonstrar que contribui para o fim proposto, que é a segurança nos eventos esportivos. No entanto, os estudos sobre a relação entre o consumo de álcool e a violência em estádios são contraditórios, e não há consenso entre especialistas de que uma proibição total seja eficaz. Ademais, há experiências de países que, ao invés de proibir, regulamentaram o consumo, obtendo resultados positivos sem prejudicar o setor econômico.
Além disso, a medida deve ser necessária, o que significa que não pode haver alternativa menos restritiva para alcançar o mesmo fim. Alternativas como a limitação de horários de venda, o aumento da fiscalização e a realização de campanhas educativas para a conscientização dos torcedores são opções que poderiam ser exploradas antes de uma proibição absoluta. Essas medidas manteriam o equilíbrio entre segurança e liberdade econômica, com impacto reduzido nas operações dos eventos.
Por fim, a proporcionalidade em sentido estrito requer que o benefício da medida seja superior ao prejuízo causado. A proibição generalizada de bebidas alcoólicas nos estádios traria perdas significativas para o setor econômico, afetando diretamente pequenos comerciantes, clubes de futebol e organizadores de eventos, que dependem dessas receitas para sua viabilidade financeira. O impacto econômico negativo, aliado à incerteza sobre a efetividade da medida para prevenir violência, sugere que o custo social e econômico da proibição é excessivo em relação ao benefício pretendido.
O Supremo Tribunal Federal tem se posicionado favoravelmente à liberdade econômica e à autonomia dos estados em situações que envolvem restrições comerciais. Em decisões recentes, o STF reafirmou que a interferência estatal nas atividades econômicas deve ser limitada e sempre pautada pela necessidade e proporcionalidade. Em 2019, com a promulgação da Lei da Liberdade Econômica (Lei 13.874), essa diretriz se fortaleceu, destacando-se a importância de um ambiente regulatório que favoreça a inovação, o empreendedorismo e a autonomia regional.
A jurisprudência aponta para uma tendência de descentralização das decisões regulatórias, especialmente em temas que possuem impacto econômico regional, como é o caso dos eventos esportivos. Portanto, o PL 4.272/2019, ao desconsiderar essa autonomia e liberdade, contraria a própria interpretação constitucional que o STF vem consolidando.
O Projeto de Lei 4.272/2019, ao propor a proibição nacional da venda e consumo de bebidas alcoólicas em estádios, apresenta vícios claros de inconstitucionalidade. Ele infringe os princípios de liberdade econômica e autonomia dos estados, ao impor uma medida centralizada que não respeita as particularidades regionais e os direitos dos organizadores de eventos esportivos à livre iniciativa. Além disso, a falta de comprovação de que uma proibição total reduziria a violência nos estádios, aliada ao impacto econômico negativo para o setor esportivo e seus parceiros, indica que a medida é desproporcional e excessivamente restritiva.
A segurança nos eventos esportivos é um objetivo legítimo, mas precisa ser equilibrada com as garantias constitucionais de liberdade econômica e autonomia federativa. Uma regulamentação que permita aos estados adotar soluções próprias, com medidas menos invasivas e mais bem adaptadas às suas realidades locais, seria mais eficaz e respeitaria a Constituição. Assim, a revisão do projeto de lei é imprescindível para que se possa alcançar um equilíbrio adequado entre a segurança pública e os direitos econômicos envolvidos, mantendo-se em conformidade com os valores e princípios constitucionais.
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