Sim, mais uma vez político perde tempo e dinheiro discutindo o que não pode. Desta vez o UOL trouxe a notícia aqui que o vereador Carlos Bolsonaro (sem partido) apresentou Projeto de lei na Câmara do Rio de Janeiro propondo proibir a participação de atleta transgênero, caso o esportista opte por disputar a categoria oposta ao sexo de nascimento. Esse é mais um dos projetos que já existem que atacam a constituição, direitos universais e o próprio esporte, que tem a não discriminação como pilar.
Já escrevi sobre isso várias vezes, mas irei colocar tudo de novo, já que alguns políticos insistem em contrariar a lógica, o direito e a civilidade.
Estado não se mete na organização do jogo, a não ser que o jogo ataque direitos. Nesse caso, é o poder público querendo atacar.
“Fica expressamente proibida a participação de atleta identificado como ‘transexual’ em equipes e times esportivos e em competições, eventos e disputas de modalidades esportivas, coletivas ou individuais, destinadas a atletas do sexo biológico oposto àquele de seu nascimento”, diz o artigo primeiro do Projeto de Lei.
Não. Não dá pra ler mais nem concordar com nada, mesmo sem ler. E nem vamos entrar nas questões morais. Vamos falar de legalidade.
Primeiro, a Câmara do Rio esta perdendo tempo – e desperdiçando dinheiro – discutindo sobre o que não pode juridicamente.
Segundo, porque há questões fundamentais de direitos humanos envolvidas nessa história.
Esqueça se você é a favor ou contra transgêneros no esporte, o mesmo vale para o VAR no futebol (sim, tem político querendo discutir o tema), ou para qualquer assunto relacionado ao jogo (não interessa o que você pensa, ou se eu sou a favor) e à organização interna das entidades esportivas.
A discussão que se propõe aqui não é sobre uma causa que se defende, mas sobre a estrutura jurídica do movimento esportivo, leis e sobre proteção de direitos humanos.
O projeto de Bolsonaro
Segundo a proposta, no momento de pedir autorização para uma competição, os organizadores deverão preencher formulário informando não haver atletas transexuais em modalidades que não sejam do seu sexo biológico.
De acordo com o Projeto de Lei, o descumprimento acarretará multa de R$ 10 mil, e o evento esportivo não receberá autorização para ser realizado. Além disso, a prefeitura do Rio não concederá bolsa aos atletas trans que participem de competições do sexo oposto ao do nascimento, ainda segundo a proposta.
“Com este argumento pseudocientífico e de clara ordem político-partidária, ativistas LGBT insistem que pais e mães devem permitir que suas crianças e adolescentes decidam em tenra idade, questões de identidade sexual”, disse o filho do presidente Jair Bolsonaro (sem partido)
Por que não pode
Esse PL não poderia nem passar pela Comissão da Câmnara. Por conta da nossa Constituição, por princípios de Direitos Humanos e pela lógica esportiva.
Sim, tanto a União quanto o Estado têm competência para legislar sobre o esporte. A Lei Pelé é um exemplo.
Porém, há várias questões esquecidas pelo vereador, algumas que tornam o projeto inconstitucional.
O inciso I do artigo 217 da Constituição Federal garante a autonomia das entidades desportivas, dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento.
O PL também ataca vários princípios fundamentais da CF , elencados no art 5º, como o da não discriminação.
Além disso, esse projeto de lei fere as resoluções da ONU e da Unesco, das quais o Brasil é signatário. Ou seja, é um problema de direito constitucional e de direito internacional.
A medida é inconstitucional e discriminatória, até porque não há prova irrefutável de ganho desportivo de mulheres trans sobre mulheres.
Além de princípios universais de direitos humanos e da Constituição Federal, é preciso lembrar da autonomia esportiva. Ela garante que nenhuma lei estadual – nem federal (!) – possa banir do esporte alguém que o movimento esportivo transnacional já disse que pode participar.
Importante jamais esquecer que quem determina as regras da competição são as confederações internacionais de cada modalidade. Seria um problema gigante Rio de Janeiro ter uma regra diferente do Brasil e de todos os outros lugares do mundo.
Se essa ideia fosse adiante (já adianto que não irá), o Brasil poderia ser punido pelo movimento esportivo, podendo ficar de fora de competições internacionais.
A grande discussão do movimento esportivo
A participação de atletas trans tem sido uma das grandes discussões do esporte. Os dois lados têm argumentos que se baseiam na busca pela igualdade.
Quem defende a participação lembra a igualdade de direitos e o necessário combate à discriminação.
Quem é contra, levanta a bandeira da igualdade de condições entre os competidores, o princípio da “paridade de armas”.
O direito esportivo tem como um dos princípios fundamentais o da “paridade de armas”. Ou seja, dar condições iguais aos competidores para garantir a “incerteza do resultado”, que também é da natureza do esporte. Em tese, homens têm vantagens físicas, como força, sobre mulheres, o que levaria um atleta transautorizado a jogar a romper com esse princípio.
Acontece que a não discriminação também é um direito consagrado em todas as cartas mundiais de Direitos Humanos, reconhecidas por muitos dos países filiados ao movimento olímpico (inclusive o Brasil), que também prega a bandeira da igualdade.
Além disso, está na Carta Olímpica, Princípios Fundamentais 2 e 4 dessa Carta determina como como base do Olimpismo o respeito à dignidade humana e a não discriminação em função de raça, cor, credo, sexo.
E tudo isso tem sido considerado nessa revolução recente que vive o esporte.
Nessa discussão, um personagem tem papel importante: a ciência.
O que diz a ciência
Confrontados com casos como o de Tifanny do vôlei o que se percebe na Lex Sportiva é que os tribunais e o próprio TAS/CAS têm permitido um diálogo com outras ordens jurídicas, principalmente quando a questão versa sobre direitos humanos.
Mas calma lá para quem já quer gritar contra o caminho que o texto vai seguindo.
O entendimento predominante tem sido de que é possível excluir pessoas com base no gênero quando a força ou a condição física forem determinantes para o resultado. O detalhe é que isso tem de ser comprovado por testes científicos e pela entidade que não quer permitir a participação do atleta. Não é o atleta que tem que provar que pode competir.
Em função de decisões dos tribunais e dos princípios olímpicos, o COI estabeleceu, em novembro de 2015, novos critérios para permitir a participação de atletas transgêneros. A entidade pede que mulheres trans se declarem do gênero feminino (reconhecimento civil) e tenham nível de testosterona inferior a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes da estreia em competições femininas. A cirurgia de redesignação sexual não é mais obrigatória.
Embora ainda se verifique que as entidades esportivas têm tentado, com estudos científicos, proteger critérios para a preservação de uma competição mais igual, de acordo com princípios do direito esportivo, é possível também perceber uma clara abertura a questões de direitos humanos. Ou seja, a Lex Sportiva tem permitido diálogos entre diferentes ordenamentos jurídicos e se desenvolvido com isso. São os entrelaçamentos transconstitucionais que proporcionam aprendizados.
Esporte e direitos humanos
Repito: esse assunto tem sido discutido no Brasil e no mundo. Com argumentos inteligentes e científicos dos dois lados. Acredito que o caminho tomado pelo COI e pelos tribunais, de controlar e acompanhar esse processo de transição, respeitando a natureza de cada um e tentando proteger a essência do jogo, seja o mais adequado.
Não existe esporte longe da proteção de Direitos Humanos.
A discussão continua. A reflexão é permanente e o diálogo sempre indispensável. Mas não entre políticos.
Mas repito aqui: se a Câmara levar essa questão adiante, o STF, lá na frente, irá agir. E declarando a Lei inconstitucional, mais uma vez o dinheiro suado do contribuinte que vive num país em crise terá sido desperdiçado de maneira irresponsável.
Acredito (e torço) para que os vereadores analisem bem a questão.
Bom trabalho para eles. E bom senso!
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