Por Tom Assmar
Jogos Olímpicos são sempre marcantes. As histórias de superação dos atletas ao levarem o corpo humano ao limite constroem narrativas adequadas à construção de mitos e heróis do esporte, vitoriosos graças ao seu talento e à sua capacidade de superar as adversidades. É o ápice do desempenho esportivo de todas as modalidades, usado tanto na vitória quanto na derrota como instrumento de celebração da grandeza da nossa condição humana.
Mas são também uma excelente oportunidade para pensar quem somos como sociedade. Afinal, no ambiente esportivo atual, a capacidade de competir depende cada vez mais da conjunção desse talento individual com três outros fatores sociais: a qualidade da educação e do conhecimento científico, o uso intensivo de infraestrutura de qualidade e a formação de equipes multidisciplinares. Em qualquer esporte, cada vez menos os resultados refletem apenas o talento e o sacrifício individuais. Os heróis subiram sozinhos no pódio, mas lá chegaram carregados por muitas outras mãos invisíveis. E assim, a medalha é um prêmio ao desempenho individual que também reflete recursos, escolhas, esforços, talentos e conhecimentos coletivos.
O acaso pode brindar um país com atletas excepcionais, cuja existência certamente trará títulos relevantes e motivará o surgimento de novas gerações. No curto prazo, o talento e o sacrifício de um indivíduo podem fazer a diferença, mas resultados positivos não se sustentam ao longo do tempo quando dependem apenas disso. A formação consistente de novos atletas depende do legado deixado pelos anteriores, tanto na forma de exemplo e incentivo quanto na existência de uma estrutura que garanta governança e recursos adequados. O talento individual precisa ser alimentado pelo ambiente coletivo. Esse é o risco de fazermos as coisas apenas pela metade: tanto no futebol pós copa 2014 quanto nos demais esportes pós olimpíadas 2016, temos colhido um desempenho inferior à nossa capacidade e ao nosso investimento. É o nosso quase legado esportivo.
Jack Soul brasileiro
E que o som do pandeiro
É certeiro e tem direção
Já que subi nesse ringue
E o país do swing
É o país da contradição
Lenine – Jack Soul Brasileiro
São as contradições de um país injusto e desigual que nos fazem conviver ao mesmo tempo com a excelência e com o atraso. A falta de um projeto coletivo de sociedade – inclusivo, consistente e de longo prazo – torna tudo mais difícil, pois como em todos os outros esportes, também no jogo da vida ninguém vence sozinho. O país que busca o ouro olímpico é o mesmo no qual 40% da sua população não tem acesso a saneamento básico. Ser o eterno “país do futuro” nos transformou no país do “quase presente”. Nosso quase legado está na construção de estádios desnecessários, nas obras de infraestrutura e mobilidade urbana inacabadas, nos gramados sem manutenção, nos ginásios abandonados, nos clubes cada vez mais endividados e no distanciamento da seleção de futebol dos seus torcedores. E está sobretudo na nossa incapacidade de usar os recursos dispendidos nesses eventos esportivos para melhorar a vida nas nossas cidades e a qualidade da educação dos nossos jovens e crianças.
Como em todo e qualquer ciclo olímpico, há perdas e ganhos a se analisar. Se evoluímos em alguns esportes, regredimos em outros. Normal que seja assim. Mas há dois fatores comuns a todos aqueles nos quais houve evolução: uma estrutura nacional de governança e financiamento que qualifique a formação do atleta e um forte intercâmbio com outros países e culturas. Nossos campeões da vela, remo, vôlei, natação, ginástica, atletismo, boxe, skate ou surf rodam o mundo nas suas competições, trocando experiências, treinando e convivendo com atletas e técnicos de várias nacionalidades. O mundo é mais generoso com aqueles que desejam aprender com a diversidade, e o esporte nos ensina novamente que o caminho do sucesso sempre passa pela inclusão. É nos esportes mais isolados e com graves problemas de governança – tal qual o futebol – onde mais regredimos. E nesse caso em particular, o muitíssimo bem-vindo ouro olímpico esconde outras verdades.
As medalhas brasileiras não têm biotipo definido. Elas vêm da pele bronzeada de sol de Ítalo, da precoce segurança de Rayssa, da força mental de Fratus, da disciplina técnica de Martine e Kahena, da simpatia contagiante de Alison, da sinceridade espontânea de Hebert, do brilho consistente de Ana Marcela, da resiliência pessoal de Thiago, da força inesgotável de Isaquias e do sorridente talento de Rebeca. São nomes, gêneros, corpos, cores, regiões e sotaques que refletem a pluralidade da mistura que nos forma. A conquista desses heróis motiva pelo exemplo, mas é o esforço das sociedades que cria legados. Em ambos os casos é preciso força, resistência, determinação, perseverança e sonho. Sim, é preciso voltar a sonhar com o futuro. Caso contrário, vamos continuar construindo apenas os nossos quase legados, nossos quase caminhos alimentados pelo isolamento e praticados em cidades, estádios, ginásios, escolas e vidas feitas apenas pela metade. Nas palavras do meu amado filho Rodrigo: “pai, uma vida de quases é uma vida de nuncas” … Pois é … Que o legado dessa Olimpíada seja lembrar a esse país tudo aquilo que somos capazes de alcançar quando nossos talentos individuais encontram as condições adequadas para se desenvolver. E não apenas no esporte … E se a partir disso formos capazes de construir uma nova consciência e ação coletivas, quem sabe finalmente seremos convidados a viver uma vida de sempres …
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Tom Assmar tem graduação e mestrado em Administração, e atua há mais de 25 anos com gestão, planejamento e finanças. Acredita que o futuro do nosso futebol passa necessariamente pela formatação de um produto que atenda aos interesses coletivos e pela qualificação da gestão dos clubes. É sócio do Futebol S/A.