O leitor que acompanha a coluna sabe que este espaço, mais frequentemente dedicado ao automobilismo e ao futebol, é antes de tudo dedicado ao esporte como um todo e sua relação com o direito. E nesta semana em que se iniciam os Jogos Olímpicos, nosso tema não poderia ser outro.
Exatos mil setecentos e noventa e sete dias após se apagar a chama no Rio de Janeiro, a pira olímpica será acesa amanhã no Estádio Olímpico de Tóquio, dando “início” (a bem da verdade, as competições de algumas modalidades já começaram) aos Jogos da 32ª Olimpíada. Aliás, pouco se nota, mas “Olimpíadas” e “Jogos Olímpicos” não são sinônimos. Enquanto a última expressão diz respeito ao evento esportivo em si, a primeira refere-se a um ciclo de quatro anos, sendo que os “Jogos da Olimpíada” (esta, sim, expressão de significado idêntico a “Jogos Olímpicos”) realizam-se no primeiro ano de cada ciclo[1] – tudo isso conforme estipulam as Regras 6 e 32 da Carta Olímpica.
Mas do que se trata a Carta Olímpica? Em sua obra “Direito e Jogos Olímpicos”, Alexandre Mestre ensina que é um documento multifacetado, com características que remetem a instrumentos de diferentes naturezas jurídicas. A um só tempo, (i) assume ares de “Constituição” ao figurar como a norma suprema do ordenamento do sistema olímpico (isso, claro, no âmbito da Lex Sportiva), (ii) revela-se como estatuto do Comitê Olímpico Internacional (“COI”) ao reger sua organização interna e (iii) remete a um contrato ao estabelecer direitos e deveres dos integrantes do Movimento Olímpico.
Além disso, a Carta Olímpica contém as normas gerais relacionadas aos Jogos Olímpicos, desde a eleição da cidade-sede até sua realização. Dali se extrai um dos principais pontos que fazem do evento, para muitos, o mais importante do esporte mundial: trata-se, grosso modo, de um compilado de campeonatos mundiais de mais de trinta modalidades realizados simultaneamente em um só país.
As normas de aplicação da Regra 40 da Carta Olímpica dispõem que cabe a cada Federação Internacional (“FI”) estabelecer as regras das competições das suas respectivas modalidades nos Jogos, inclusive quanto aos critérios de qualificação para o torneio. Ainda que essas regras estejam sujeitas à aprovação final pelo Comitê Executivo do COI, a primazia é das FIs. Por exemplo: é a FIFA quem tem a iniciativa de estabelecer as condições de idade dos atletas elegíveis a participarem da competição de futebol masculino, a quantidade de vagas por continente, o formato de disputa, etc. – tudo, repita-se, posteriormente aprovado pelo COI.
Em relação à organização do evento em si, a Carta Olímpica determina em sua Regra 35 que o responsável direto deve ser um comitê organizador local, devidamente constituído como pessoa jurídica no país-sede. Essa entidade não se confunde com o Comitê Olímpico Nacional (“CON”) do respectivo país, que tem como atribuição a preparação e o gerenciamento da delegação de atletas nacionais que participa do evento.
Uma vez constituído, o comitê organizador torna-se parte do Host City Contract (Contrato de Cidade-Sede). Na forma, da Regra 36 da Carta Olímpica, esse contrato é celebrado entre COI, cidade-sede e CON imediatamente após escolhida a sede. Ali se estipulam direitos e obrigações de cada uma das partes (inclusive do comitê organizador), incluindo normas relacionadas ao próprio financiamento dos Jogos e à divisão de receitas obtidas em função do evento.
No caso específico de Tóquio 2020, o contrato foi objeto de quatro alterações desde sua celebração em 2017. Isso não seria incomum por si só, mas o objetivo do quarto termo aditivo, sim, foi excepcional: adequar o instrumento contratual à postergação do evento para 2021. Ali se estabeleceu, por exemplo, que o nome e a marca dos Jogos continuariam fazendo referência ao ano de 2020, bem como se acordou que as partes envidariam os melhores esforços para minimizar o impacto do adiamento sobre os custos do evento.
O arcabouço normativo que se aplica aos Jogos Olímpicos evidentemente não se esgota na Carta Olímpica e no Host City Contract. Leis nacionais, regulamentos do COI e das FIs e outros contratos diversos firmados pelo COI e/ou pelo comitê organizador junto a terceiros também são exemplos de uma complexa rede de normas que regem cada minúcia desse evento tão grandioso. Mas, a partir dessas noções básicas acerca da Carta Olímpica e do Host City Contract, é possível compreender os pilares fundamentais que norteiam os Jogos Olímpicos e a importância do direito para o sucesso do evento – vide as soluções contratuais necessárias à readequação da data de sua realização.
Enfim, também em função desses aspectos jurídicos (sobretudo aqueles de natureza contratual e regulamentar, com normas especialmente criadas para lidar com a situação excepcional da pandemia de Covid-19), enfim chegamos ao início desse evento único. Sendo assim, fica a torcida para que tudo transcorra bem e que possamos desfrutar da nata do esporte mundial. Que comecem os Jogos!
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[1] Ressalvada precisamente a edição que se inicia nesta semana, adiada por de 2020 para 2021 devido à pandemia de Covid-19.