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Que os deuses não nos livrem de mulheres CEO’s: uma ode a Yane Marques

                                             “Meus ancestrais e irmãos foram reis de Esparta.

Eu, Cinisca, vitoriosa com um carro de cavalos com pernas ligeiras,

Ergui esta estátua. Declaro que sou a única mulher

Em toda a Grécia a ter vencido esta coroa.” 

Cinisca de Esparta

“Deus me livre de mulher CEO”, disse o homem que, dias atrás, mesmo durante um período eleitoral com direito a cadeirada e tudo, galvanizou a opinião pública não apenas pelo tom machista – para dizer o mínimo – mas pelas sucessivas tentativas de tentar explicar o que, palavras postas, já dispensava outros esclarecimentos para que se formasse a conclusão de que era, e é, mais do que despreparado para a função que exercia, um indivíduo em descompasso com o seu tempo.

Em outros tempos e paragens, um comentário como esse não apenas não faria sentido algum como quem o proferisse não seria tachado de anacrônico, mas sim de louco. Falo da Grécia da Antiguidade Clássica – donde os pais do autor da ofensa claramente buscaram inspiração para, tropicalizando-o, batizá-lo de Tallis. Lá, o cenário não seria de contrariedade. Antes pelo contrário. Nessa Grécia pela qual modernos e pós-modernos suspiram, saudosos dos velhos tempos, gente considerada de jaez expressava abertamente opinião semelhante, e o que é pior, o fazia com naturalidade, convicção e com vistas a convencer os demais de que certas coisas – como o exercício de posições de comando e ocupação de funções públicas, por exemplo – eram elementares por natureza e não resultado da livre escolha dos indivíduos. Aristóteles o disse com todas as letras quando afirmou que “embora haja exceções antinaturais, na ordem natural o macho é mais talhado para o comando do que a fêmea” [e que] “a relação de superioridade do macho para com a fêmea é permanente, independentemente da idade da mulher” e quando, invocando Sócrates, asseverou que “a temperança, a coragem e a justiça não são as mesmas em um homem e em uma mulher. A coragem de um consiste em comandar; a da outra, em obedecer”[1].

As lições do preceptor de Alexandre Magno não apenas apontavam para uma pretensa hierarquia natural a informar as relações homem-mulher, cuja natureza seria política, como também que a virtude da mulher – aquilo para o que nascera – era a da submissão às ordens daquele. Para o filósofo, por estar naturalmente inclinada à submissão, a capacidade deliberativa da mulher era algo inválido. Thallis não foi tão elaborado e é provável que nunca tenha lido nada do grego, o qual, embora pudesse não compreender a razão do brasileiro para assim se expressar, é muito provável que, para não entrar em contradição consigo mesmo, a tivesse chancelado.

O efeito prático dessas lições aristotélicas é que às mulheres se negavam os direitos de cidadania ativa, especialmente o de fazer parte da pólis, o espaço público por excelência, nos dizeres de Hannah Arendt, restando alijada ao ambiente doméstico, o qual compartilhava com crianças e escravos. Aos homens cabia lidar com os assuntos públicos; às mulheres, com os domésticos. Naquela Grécia, mulher virtuosa deveria ser quase como a mulher de Temer, recatada e do lar.

E não era apenas na pólis que não se admitia a presença feminina. Nessa mesma Grécia onde o pensamento ocidental deita suas raízes, mulheres casadas não podiam tomar assento durante os jogos pan-helênicos, especialmente os Olímpicos.

Mas como a regra sempre encontra exceção, num longínquo século IV a.C., e embora não estivesse fisicamente presente à arena – e, portanto, não tenha ido de encontro ao costume – uma nobre espartana, de nome Cinisca, sagrou-se campeã. A quadriga que mandou aos jogos venceu e não foi apenas uma vez, mas duas, e em sequência, 396 e 392 a.C. Os cascos de seus cavalos abriram uma brecha na História Olímpica, lhe valendo o direito – até então reservado apenas a homens, de ver estátuas erigidas em sua homenagem e ter seu nome inscrito na pedra para que os olhos da imorredoura Posteridade pudessem saber de seus feitos – a inscrição transcrita na epígrafe deste texto encontra-se junto ao antigo Templo de Zeus, em Olímpia, onde os jogos ocorriam.

Mas é digno de nota que a vitoriosa fosse uma lacedemônia e não uma ateniense, onde Sócrates, Platão, Aristóteles e outros tantos filósofos desfilavam seus ensinamentos em praça pública. Diferentemente de Atenas – e de outras cidades-Estado, às mulheres espartanas era assegurada uma série de direitos, do acesso à educação – inclusive ginástica, até os de propriedade de bens, sem contar que, diversamente de suas homólogas, não se viam obrigadas a se ocupar dos afazeres domésticos (que ficavam por conta de escravos), o que lhes dava tempo inclusive para desfrutarem de liberdades sexuais, como manter relacionamentos extraconjugais, sem ferir qualquer lei, como as existentes em outras cidades-Estado, que previam punições para o adultério feminino. Nesse sentido, as espartanas se pareciam mais com as deusas do Olimpo.

Poucos séculos após a conquista de Cinisca, sob o beneplácito de outro Deus, o influxo de novos – mas não tão progressistas – valores, da sanha aniquiladora de outros adoradores, a batuta da dominação romana e da acusação de paganismo, no século IV d.C, Teodósio jogou para a plateia de cristãos e proibiu os Jogos. Apagou-se a chama olímpica, deusas e deuses, que já tinham trocado de nome ou ganho outros mais ao gosto do freguês, foram despejados de seus templos e morada e uma monarquia – ou uma regência trina e indivisível – divina e masculina se impôs à plural autocracia olímpica.

Foi preciso que um outro aristocrata, Pierre de Coubertin, viesse e soprasse os mais de 1500 anos de poeira acumulada sobre a lenda dos Jogos para que eles ‘ressurgissem’, agora sob roupagem mais moderna e já sem laivos divinos. Sob a poeira dos séculos, foi capaz de fazer crer que ainda ardia uma brasa e que ela poderia fazer reacender a chama dos velhos tempos.

Oito séculos separam os feitos de Cinisca do fim dos jogos, 1.500 anos perfazem a distância temporal entre o anno ad quem e o seu ressurgimento, em 1894. Ainda que as mulheres só tenham vindo a competir a partir da segunda edição dos Jogos Olímpicos da Era Moderna, em 1900, e não na sua edição de ‘ressuscitação’, no que concerne à sua participação, é inegável que o sopro coubertiano foi forte o suficiente não apenas para lançar longe a poeira acumulada, mas também para alentar uma nova chama, que ilumina e dá calor a novos valores, ditos do Olimpismo: excelência, amizade, coragem, determinação, respeito, inspiração e igualdade, em muitos aspectos, muito diferentes dos da Antiguidade. Desse sopro ‘recriador’ não surgiu um homem, “un animal plus noble, plus capable, d’une haute intelligence et digne de commander à tous les autres, que manquait encore”[2], como disse Ovídio, mas, mesmo com algum atraso – ou no compasso do tempo histórico, um movimento em que já não prevalece uma diferenciação inata entre homens e mulheres, a preservar uma substancial semelhança entre valores antigos e modernos. Inspiração para a necessária expiração criativa.

No campo da competição, homens e mulheres têm sua igualdade respeitada e espaço para fazer florescer sua areté, palavra grega para virtude, que, com lastro na própria lição de Aristóteles, traduz-se por nada mais, nada menos do que excelência. Eis aí entrelaçados os valores do Olimpismo.

2.300 anos separam o feito da espartana do de Yane Marques, de Afogados da Ingazeira, Pernambuco, em 3 de outubro passado. Na condição de atleta do pentatlo moderno, Yane competiu muitas vezes e marcou seu nome na história olímpica ao conquistar a medalha de bronze em Londres (2012), tornando-se a primeira latino-americana a vencer na modalidade nesse tipo de competição. E, já não empunhando uma espada ou uma pistola nem nadando, correndo ou cavalgando, volta a inscrevê-lo na pedra da memória esportiva nacional como a primeira mulher a ocupar – nos mais de 100 anos de existência da instituição – a [vice] presidência do Comitê Olímpico do Brasil.

É uma mudança de ares que merece registro e comemoração, não apenas pelo feito em si, mas pelo simbolismo que carrega. Não nos esqueçamos que houve um tempo – e que não vai tão longe quanto os anos dourados do Helesponto –, quem sabe abeberando-se das aristotélicas lições, e para aplauso dos Thallis’s de plantão, a lei brasileira interditava às mulheres a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza[3], as quais deveriam ser definidas pelo Governo – que o fez em 1965 e proibiu, entre outras, o futebol, o levantamento de peso e qualquer tipo de luta. Mais uma vez, tal como as mulheres de Atenas – que Chico Buarque tão bem canta em música homônima – à mulher brasileira cabia o resguardo do lar e a criação dos filhos, o que a violência dos embates esportivos poderia prejudicar. O resultado foi seu alijamento não só da prática esportiva, como da gestão, assegurando-se, num e noutro campo, uma proeminência masculina.

A lei caiu, mas, especialmente no que se refere à gestão, as barreiras se mantiveram. Foi necessário o esforço conjunto de atletas e Estado para que mudanças fossem feitas e o novo feito de Yane alcançado. Nesse sentido, a introdução do art. 18-A na Lei Pelé, em 2013, produto da mobilização de atletas e entidades e da sensibilidade do Estado em entender o momento histórico, cumpriu um papel importantíssimo, pois, pela primeira vez, institucionalizou-se e assegurou-se, por meio de mecanismos com enforcement proporcional, constitucional e adequado, a participação ativa de atletas nos colegiados decisórios e o direito a voto. Foi como mudar a lei da ágora e conferir o status de cidadão a quem antes era senão escravo, mero meteco em sua própria casa. Os números da votação do último dia 3 de outubro mostram que sem os votos dos atletas o sistema se manteria incólume e indene à mudança, preservando e cultivando sua longa e anacrônica tradição aristocrática, feudal e obscura.

E a imprensa não deixou de noticiar que houve tentativas reacionárias que questionaram a própria aplicabilidade do art. 18-A à presente eleição ou seus efeitos – a suspensão imediata de repasse de recursos públicos federais de quaisquer origens, inclusive os de patrocínio e concursos lotéricos, e o próprio COB tornou pública manifestação defendendo posição com tais laivos. Os votos – inclusive de atletas-eleitores que tiveram que arcar, com recursos do próprio bolso, com as despesas de deslocamento para poder exercer o direito que lhes foi conferido por lei e estatuto – coartaram a reação do status quo e dão o impulso a uma nova fase.

Plutarco nos lembra que além da mudança de status em sua terra natal e da oferta de prebendas, placas e estátuas, o vencedor dos jogos era convidado a derrubar parte das muralhas que guarneciam a cidade, ato cujo objetivo simbólico era relembrar aos forasteiros que quem tinha um campeão entre os seus não precisava de muros para sua defesa. Yane e os atletas reafirmam esse direito e, com o art. 18-A como aríete, derrubam as barreiras do arcaísmo. Que a gestão que se inaugura em breve potencialize os resultados do esporte brasileiro e não se esqueça que, como diz Comte-Sponville, “toda virtude é […] histórica, como toda humanidade, e ambas, no homem virtuoso, sempre coincidem: a virtude de um homem é o que faz humano, ou antes, é o poder específico que tem o homem de afirmar sua excelência própria, isto é, sua humanidade”, bem como que “a virtude ocorre […] no cruzamento da hominização (como fato biológico) e da humanização (como exigência cultural); é nossa maneira de ser e de agir humanamente, isto é (…), nossa capacidade de agir bem.”[4]

Que os atos de Yane – e de outros atletas – sirvam de exemplo a outros e sejam capazes de mudar a verdade histórica, sem esquecer das palavras de outro grego, o filósofo Aristocles, mais conhecido por Platão, que significa “amplo”, apelido da época em que era pugilista, de que “há muitas mulheres que são melhores que os homens em numerosas tarefas […] e que “a aptidão natural, tanto do homem quanto da mulher, para guardar a cidade é, por conseguinte, a mesma”[5]. Que alcancemos o tempo em que já não importe o gênero do CEO mas perquiramos apenas quem é o mais competente para ocupar a função. Até lá, que os deuses – os pagãos ou os do compliance – antes nos livrem do mal, personificados em tantos Thallis por aí, do que de mulheres CEO’s.

Crédito imagem: AFP PHOTO / JOHN MACDOUGALL

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Pitágoras Dytz

Escritor, ex-Consultor Jurídico junto ao Ministério do Esporte

@pitagoras_dytz

[1] Aristóteles, Política, São Paulo: Martin Claret, 4ª reimp., 2010, p. 74-7.

[2] Ovídio, Les Métamorphoses, I, 76-80, p. 45.

[3] Art. 54 do Dec.-lei nº 3.199, de 14 de abril de 1941.

[4] Comte-Sponville, André. Pequeno tratado das grandes virtudes. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995, preâmbulo.

[5] Platão, A República. São Paulo: Martin Claret, 7ª reimp., 2009, 455a-e, p. 150.

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