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Quem não sonhou em ser um jogador de futebol?

 Era 1996 quando a banda mineira Skank gravou a música “É Uma Partida de Futebol”, composta por Nando Reis e Samuel Rosa. Na canção, o esporte mais popular do Brasil e do mundo é exaltado: que beleza é uma partida de futebol! Vinte e quatro anos depois, pode-se dizer que a música já se tornou um clássico nacional. E não foi a primeira nem a última a cantar o futebol; diversos compositores brasileiros já nos brindaram com outras tantas canções icônicas tendo o esporte mais popular do país como tema. E é justamente essa popularidade que faz do futebol parte da própria cultura nacional, despertando sonhos em adultos e crianças, como Nando Reis e Samuel Rosa bem registraram: quem não sonhou em ser um jogador de futebol?

Esse papel preponderante do futebol na cultura esportiva brasileira tem reflexos claros no direito desportivo. O principal deles reside no fato de que a legislação esportiva em nosso país é amplamente voltada para a realidade futebolística. Em outras palavras, é comum que o legislador tome o futebol como base para editar normas que regem o esporte.

A Lei Pelé é o exemplo maior disso. A principal lei em vigor a dispor sobre o esporte em nosso ordenamento jurídico apresenta diversos dispositivos com clara destinação ao futebol.

A começar pela própria definição de prática profissional do esporte, que requer “remuneração pactuada em contrato formal de trabalho entre o atleta e a entidade de prática desportiva”. É esta a realidade do futebol, mas não a de tantas outras modalidades – cujos atletas notoriamente fazem do esporte de rendimento seu ofício, mas nem por isso possuem qualquer vínculo junto a entidades de prática desportiva, remunerando-se por meio de patrocínios ou mesmo premiação. É a situação, por exemplo, de um tenista que dispute o circuito da Associação dos Tenistas Profissionais. Pode ser também o caso de um piloto das principais categorias do automobilismo nacional, quando a sua relação jurídica com a respectiva equipe não seja de natureza trabalhista. Não por acaso, o artigo 57 da Lei Pelé, ao tratar de “recursos para a assistência social e educacional aos atletas profissionais, aos ex-atletas e aos atletas em formação”, refere-se especificamente a entidades ligadas ao futebol (FAAP e FENAPAF) – como se fosse a única modalidade passível de prática profissional, o que é uma evidente distorção.

Um tema que atualmente se encontra no centro das discussões também evidencia a “futebolização” da legislação esportiva brasileira: o direito de arena. Os debates giram em torno da MPV 984 (já não mais em vigor) e da ideia de se atribuir tais direitos ao mandante de uma partida. O conceito de mandante evidentemente pode se aplicar ao futebol e a modalidades coletivas como vôlei (de quadra) e basquete; mas é de difícil (ou mesmo impossível) aderência à realidade de tantas outras modalidades. Vide os casos de eventos de atletismo (por exemplo, uma maratona), natação ou mesmo vôlei de praia.

O ponto fulcral a ser observado é que, embora tais normas tenham sido concebidas tomando a realidade do futebol como ponto de partida, não há qualquer restrição quanto à sua aplicação a todo e qualquer esporte. Isso cria imensos desafios na aplicação do direito às outras modalidades, uma vez que de um lado há regras em vigor a serem observadas, e de outro uma realidade fática que nem sempre comporta sua possível observância. E a Lei Pelé é apenas um exemplo dentre outras normas implicitamente destinadas ao futebol, mas cujo teor indica aplicabilidade ao esporte em geral; o Código Brasileiro de Justiça Desportiva bem ilustra esse cenário, na medida em que as infrações nele descritas amoldam-se ao futebol mas não necessariamente a diversos outros esportes (embora se permita a criação de tábuas de infrações específicas a cada modalidade).

Ainda que a distinção entre o futebol e as demais modalidades seja, via de regra, implícita, gerando os desafios acima destacados ao operador do direito, o artigo 91 da Lei Pelé acaba por explicitá-la ao indicar uma série de artigos do próprio diploma legal como obrigatórios “exclusivamente para atletas e entidades de prática profissional da modalidade de futebol” (sendo facultada sua observância nas demais modalidades). Esse dispositivo, de um lado, corrobora justamente o fato de que parte substancial da lei foi editada com base na realidade futebolística e ignorando o contexto das outras tantas modalidades esportivas; de outro, não elimina o problema de inadequação de normas cogentes à realidade da maioria dos esportes, uma vez que são poucos os dispositivos indicados como compulsórios apenas ao futebol.

Trata-se de uma deficiência da legislação esportiva brasileira. É natural que o futebol, enquanto carro-chefe e principal vetor econômico do esporte nacional ocupe posição de destaque e tenha normas específicas destinadas a si. Contudo, isso não significa que o contexto de diversas outras modalidades deva ser ignorado por completo, submetendo seus atletas e as entidades de administração ou de prática do desporto a regras de difícil (ou, repita-se, impossível) aplicação. Nesse sentido, o ideal seria que as normas aplicáveis a todo o esporte considerassem as diferentes realidades de modalidades distintas – sem prejuízo da criação de regras especificamente concernentes ao futebol na própria lei, conforme proposto no Projeto de Lei do Senado nº 68/2017.

Essa melhoria seria importante não apenas para conferir maior efetividade à lei, mas também para atender à evolução de modalidades esportivas que nas últimas décadas vêm se destacando pela crescente profissionalização de sua prática e de sua gestão – e, ainda, àquelas que venham a se desenvolver no futuro. Podem ser incluídos nesse contexto, aliás, os eSports, que apresentam crescimento exponencial e revelam incrível potencial econômico.

O direito precisa estar atento a essa realidade, que aponta para a necessidade de se ter em conta a diversidade do esporte na elaboração de leis que regem as atividades esportivas. Por mais emocionante que seja uma partida de futebol (como diz a canção), os fatos revelam que outras tantas modalidades também permeiam os sonhos de crianças e adultos.

Nesse contexto, destacam-se os eSports com imensa popularidade entre os jovens e elevado potencial econômico, mesmo em tempos de pandemia. Um fenômeno que atinge sobretudo crianças e adolescentes, “ameaçando” (ou em alguns casos indo além) o futebol em sua tradicional posição hegemônica em termos de popularidade nessa faixa etária. A ponto de ser possível repensar a letra da música: no mundo dos jogos eletrônicos, quem não sonha em ser um pro player?

Enfim, talvez o crescimento exponencial dos eSports seja o gatilho a disparar uma importante mudança na forma como o legislador pensa o esporte e dispõe sobre as relações esportivas, “desfutebolizando” nossas leis; talvez seja outro o esporte ou fator a provocar essa mudança. De uma forma ou de outra, caso isso aconteça, será um importante avanço para o esporte brasileiro em toda a sua diversidade (e sem prejuízo para o futebol e os próprios eSports, visto que eventuais peculiaridades podem ser tratadas em normas que lhes sejam destinadas de forma específica). Afinal, se muitos sonham tornar-se um jogador de futebol ou mesmo um pro player, outros tantos sonham, antes de tudo, em ser um atleta – cada um de acordo com a modalidade esportiva que lhe atrai.

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