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Quem vai ser o primeiro?

A primeira vez que não pagaram o Marinho foi há muito tempo. O clube passava por uma situação difícil, e a seca de vitórias somada com a ausência de títulos já fazia com que os filhos dos filhos daquele primeiro grupo de rapazes que fundou o Olaria preferissem dar voltas por outras bandas que não os degraus e as balizas do alçapão da Rua Bariri, na zona norte da cidade. Na verdade, o problema dos atrasos nos salários não era só do Azulão. Por onde se olhasse, os clubes mais antigos aqui e ali pareciam estar numa quebradeira de dar dó. E não só eles. A verdade é que a crise era geral. Padarias, farmácias e até o mercado que tinha lá não sei quantos anos estavam com a porta mais fechada do que aberta. Com o país sem dinheiro, o futebol era como todo o resto: a concentração de renda nas mãos de poucos e a grande massa lutando pelo salário mínimo.

Não tinha o que fazer. No conselho do Olaria a solução ficara acordada: ninguém recebe salário. Era isso, ou podiam trancar de vez os portões até mesmo da sede social. Além disso, fizeram uma parceria com uma empresa que pra botar um dinheiro no clube passava a ter o passe de muita gente. O jogador continuava indo treinar, claro. Ai dele se não. Mesmo sem receber, o torcedor não perdoava o ingrato que virava as costas pro clube. Justo nessa hora? Tudo bem que o ganha pão não vinha, e que a conta lá na casa do sujeito continuava chegando todo mês, mas fome por fome a de título doía mais. E até que o salário voltasse a pingar, era melhor irem levando assim. Até porque, o jogador que quisesse sair tinha que pedir a autorização do clube pra liberar no BID, e mesmo depois da Lei Pelé, a liberdade pra sair porta afora ficava só no papel. Enquanto o clube quisesse atrapalhar, o registro podia ficar lá parado um bom tempo sem o jogador jogar em lugar nenhum. Abre janela, fecha janela, e ele lá. Pendurado. Sem trabalho e sem salário. Como uma chuteira sem uso e sem cuidado, aposentada antes da hora.

O Marcus Vinicius, de 19 anos, apesar de não ir mais na aula desde nem se lembra quando, aproveita a carteira de estudante pra andar de ônibus sem pagar passagem. Só assim pra sair de realengo e chegar na zona norte da cidade, sem receber um nada nem de ajuda de custo. Uma vez, perguntaram pra ele se o sonho do moleque era ser como o Romário, revelado por lá. Pra quem achou que vinha um sim, se enganou. A resposta veio outra. Pro Marcus Vinicius, ser estrela nem estava no script. Conseguir viver do futebol já tava bom. Tanta gente se dedicando a tanta coisa com o salário pingando todo mês. Porque no futebol não podia ser assim também? O sonho era esse: a Dona Rita em casa, sem precisar dos dois empregos pra pagar as contas do menino. Isso do futebol ser como uma montanha russa onde se ganha tudo ou não se ganha nada era de doer.

Desde muito tempo, já se discute a criação de um piso salarial pros atletas, e de uma série de medidas pra punir o clube que não paga. Até hoje, falta quem compre a briga junto com os atletas que trabalham no andar debaixo do pedestal da fama. Quem hoje ganha muito às vezes não se lembra de como são essas coisas, e por isso não se engaja. O pior é que, como ficam no topo, são vistos como a regra. Amargo engano. O Bruno mesmo, do Olaria, há meses aproveita que o time treina às terças, quintas e sextas pra trabalhar na loja de telefones no dia que sobra. Vergonha nenhuma. Não fosse isso ia ser difícil manter a dieta de atleta com tanto suplemento pra tomar. Principalmente nessas épocas, o clube é que não ia dar.

Em 2015, a CBF divulgou as regras de fair play que vieram de cima pra baixo, o que quer dizer, da FIFA. “O clube que, por período igual ou superior a 30 dias, estiver em atraso com o pagamento de remuneração, devida única e exclusivamente durante a competição, conforme pactuado em Contrato Especial de Trabalho Desportivo ao atleta profissional registrado, ficará sujeito à perda de três pontos por partida a ser disputada, depois de reconhecida a moral e o inadimplemento por decisão do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD)”, sintetizou o artigo. Era um pouco parecido com o que acontecia ali do lado, com os Argentinos. Com a diferença de que lá, a punição vinha junto com a greve dos atletas, que assombrava mais do que a possível perda de pontos.

Desde então, apesar das histórias do Bruno, do Marinho, do Marcus Vinicius e de outros tantos atletas que espremem o orçamento sem receber salário por mais de mês, não se sabe de um clube que tenha perdido ponto. No máximo, uma janelinha sem contratar, e olhe lá.

Agora, em 2020, a FIFPRO, que já vinha divulgando relatórios que denunciavam mais ou menos a nossa história se repetindo em escala global, resolveu dar um passo a mais, e junto com a FIFA, criou um fundo pra pagar jogadores que recebem calotes. Parece muito bom, mas se o critério for ordem de chegada, é melhor estarem preparados pra organizar a fila.

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